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ENCADERNAÇÃO

ALHARES, L.DA

R. Almirante Pessanha, 11

LISBOA

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in 2012 with funding from

University of Toronto

http://archive.org/details/paleoethnologi01veig

ANTIGUIDADES M0HUM1TAES DO ALGARVE

PALEOETHNOLOGIA

ANTIGUIDADES lillfflS DO MI

TEMPOS PREHISTORICOS

POR

SEBASTIÃO PHILIPPES MARTINS ESTACIO DA VEIGA

Sócio correspondente da academia real das sciencias

e da sociedade de geographia de Lisboa, do instituto e da sociedade broteriana de Coimbra,

do imperial instituto archeologico germânico de Roma, da sociedade franceza

de archeologia, da real academia da historia de Madrid, da sociedade económica de Málaga,

da academia de archeologia da Bélgica,

do instituto archpologico e geographico pernambucano, collector

e fundador do museu archeologico do Algarve

VOLUME I

LISBOA

IMPRENSA NACIONAL

1886

Cu

11

1 1

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ADVERTÊNCIA

No programma geral d'esta obra estavam destinados todos os assumptos concernentes ao período neolithico para consti- tuírem o primeiro volume, suppondo que não excederiam o nu- mero de paginas que cada livro deve ter, em vista da terceira condição1 do contracto que o governo commigo celebrou para eu descrever em cinco ou seis volumes as Antiguidades monumentaes do Algarve; e, com effeito, se me houvesse limitado aos desco- brimentos provenientes do reconhecimento que me foi incum- bido para a elaboração da carta archeologica d'aquella província, o calculo não falharia.

Succedendo porém haver noticia de terem posteriormente apparecido outras muitas antiguidades, que deixavam perceber a existência de importantes estações não ainda conhecidas, de- terminou o governo que fossem estudadas, a fim de serem sym- bolisadas na carta archeologica e descriptas na obra contractada.

Feita uma exploração complementar, ganhou a carta mais cincoenta e sete logares com antiguidades prehistoricas ; mas ainda assim pensei que accresceníando umas cem paginas ás que volume devera conter, poderia abrangel-as, e com este intuito começou o trabalho da composição.

1 «Condição 3.a Cada volume não conterá menos de trezentas paginas de texto de corpo 12 n.° 2, entrelinhado, formato 8.° lranccz grande, a fora as estampas e desenhos correspondentes.»

VI

Quando, porém, estando impressas mais de quatrocentas paginas, se calculou faltarem ainda umas duzentas, e que nu- merosas estampas tinham de ser addicionadas, notou-se que o livro attingiria extraordinária grossura, de que resultariam di- versos e simultâneos inconvenientes ; pois ficaria assim em des- harmoniosa desproporção com o formato; a brochura seria assaz trabalhosa, demorada, de muito despendio e pouco consistente; subordinado a uma taxa bastante elevada, que de certo impedi- ria o consumo; seria sensivelmente incommodo para a leitura; estragar-se-hia com facilidade, obrigando logo o possuidor á in- evitável despeza da encadernação; e o peso, que ficaria tendo, causaria muito embaraço e avultado custo para poder ser trans- portado por via postal.

Todas estas considerações, praticamente suscitadas pelo des- envolvimento do livro, logo que chegou aos dois terços da sua composição typographica, me obrigaram a reduzil-o, sem com- tudo interromper ou alterar a numeração ordinal dos capitulos e da paginação, emquanto não chegasse ao seu termo final o estudo respectivo a todos os característicos pertencentes ao período neolithico, os quacs forçadamente tiveram de ser repartidos, e concluídos no segundo volume, em grande parte impresso para em breve tempo ser levado á publicidade.

Nenhum prefacio, poucas explicações e vários agradecimentos

O prefacio, que competia a este livro, ja não pode ler ca- bimento, porque foi escripto numa conjunctura em que algumas illusões animavam ainda os intuitos verdadeiramente bons e ge- nerosos com que desejei empenhar os meus mais decididos esforços para firmar um programma, que, em razão da sua proficuidade, regesse methodicamente o descobrimento, o estudo e a represen- tação do riquíssimo thesouro, sempre mal comprehendido e mal estimado, das mui complexas antiguidades paleoethnologicas e históricas, que todos os entendimentos illustrados deviam presu- mir que existisse largamente ramificado em todo este reino; e, com effeito, aquellas illusões, emquanto não fui compellido a transferir o museu archeologico do Algarve para uma apertada e sombria arrecadação da academia de bellas artes, não deixa- vam de ser alimentadas com algum fundamento, visto que até então nunca me tinham sido recusados os auxílios de que care- cia aquella nascente e mui esperançosa instituição.

As causas, porém, que promoveram o encerramento do mu- seu, produziram outros adversos resultados, que aqui me abste- nho de relatar, comquanto indispensavelmente julgue dever declarar, que o retardamento nesta publicação não me pode ser attribuido, porque tendo o governo contractado a primeira edição da minha obra em cinco ou seis volumes, e obrigando-se por

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uma cscriplura de contracto a fornecer para cada um as respe- ctivas estampas, somente em 30 de março de 1886 acabei de receber as que havia muito tempo impediam a impressão d'este primeiro tomo; o que me levou, para as intercalar na ordem geral dos assumptos, a alterar em grande parte o manuscripto que desde agosto de 1885, embora por este motivo forçadamente incompleto, tinha apresentado; e se a composição não começou logo, mas muitos mezes depois, foi por haver numerosos traba- lhos accumulados nas oíficinas typographicas da imprensa na- cional, e não por falta de texto preparado ; pois até ao fim do quarto capitulo não havia estampas.

Dadas estas explicações a todas as pessoas que vagamente me tenham julgado em falta, reservo as que por emquanto ficam em silencio para um escripto de outra Índole, se a tanto for obri- gado.

Antes porém de dar logar n'este livro ao primeiro capitulo, cumpre-me registrar algumas palavras de respeitosa lembrança, de que me confesso devedor a muitas pessoas ainda existentes e á memoria de outras fallecidas, que .me honraram com o seu efficaz adjulorio desde que a meu cargo tomei o estudo geral das antiguidades do Algarve.

N'estes termos e com estes intuitos, cabe a primasia ao go- verno que em 1877, certamente por informações ou conceitos de que eu não era merecedor, me preferiu entre os sócios da aca- demia real das sciencias de Lisboa para a elaboração da carta archeologica do Algarve, havendo na academia sapientes archeo- logos, que muito melhor teriam sabido corresponder a um tão difficil emprehendimcnto.

A este respeito posso afoulameníe declarar, que não me of- fereci, não me fiz- lembrado, e que não foi sem grande hesitação que annui ao convite do governo, como se me fora dado presa- giar a impagável perda da minha anterior traquillidade e as ruí- nas que um mesquinho antagonismo desde então me foi prepa- rando.

Ao actual sr. ministro do reino, que, sendo-o igualmente

IX

em 1880, se dignou incumbir-mc da organisação do museu ar- cheologico do Algarve, porque o julgou ião indispensável para a comprovação authentica da caria archeologica, como de publica utilidade scientifica, envio o meu mais respeitoso agradecimento, por baver-me confiado a direcção de um serviço sobremaneira importante e honroso, sentindo porém que s. ex.a não tenha ainda podido examinar a verdadeira c assaz injustificável causa que originou o encerramento d'esse museu, para o restaurar agora, que pode ser em maior escala ampliado e enriquecido com preciosas collecções ultimamente organisadas, e mantel-o com os mesmos fundamentos de reconhecido préstimo que o le- varam a determinar a sua fundação.

Com mui valiosa cooperação concorreu o sr. conselheiro António Maria de Amorim, director geral de instrucção publica, tanto para eu poder levar a effeito os trabalhos respectivos a carta archeologica, como para os da organisação do museu, e ainda posteriormente para os da exploração complementar que fiz em 1882.

Ficando pois todos estes serviços, e bem assim os que são relativos á publicação d'esta obra, subordinados á sua superior direcção, cabe-me o dever de manifestar-lhe o meu reconheci- mento pela benevolência com que os tem auxiliado, esperando porém que queira empregar a sua mais vigorosa iniciativa, como ao seu cargo compete, para qu^ o museu archeologico do Al- garve, onde estão depositadas as minhas antigas collecções e de- vem estar outras muitas ainda ignoradas, seja promptamente reorganisado, sem dependência de pretenciosas intrusões, a fim de que readquira o valor scientifico, que ninguém lhe pode ne- gar, e a^consideração com que taes instituições estão sendo alta- mente estimadas e mantidas nos paizes de mais adiantada civili- sação.

Foi assaz melindrosa a situação em que me achei no Algar- ve, tendo a meu cargo reconhecer as antiguidades que deviam ser symbolisadas na carta archeologica, pela maior parte concen- tradas em terrenos de dominio particular. Era pois mister solici-

X

lar licença aos proprietários para por meio de excavações chegar a classiíical-as.

Numerosas licenças foram pedidas e nenhuma recusada. Não lendo o direito de lançar mão dos monumentos descober- tos em propriedade alheia, mas receando que ficassem dispersos e em risco inevitável de se perderem, a todos os proprietários propuz oficiosamente tomar eu conta dos que fossem achados para com elles organisar um museu, que ficasse representando as antiguidades da nossa bella província. A idéa agradou geral- mente, porque era o inicio fundamental de uma instituição útil e honrosa para o Algarve.

Alguns parentes e amigos, querendo porém levar os seus obséquios a um maior grau de primor, preferiram offerecer para as minhas collecções particulares numerosos monumentos e arte- factos que tinham antecedentemente encontrado nos seus traba- lhos ruraes, e d'este modo, assim como comprando todos os obje- ctos antigos que me eram apresentados, consegui dar ás minhas antigas collecções grande desenvolvimento.

Ricos e pobres me receberam sempre com a mais mimosa affabilidade, e por isso não acho termos bastante significativos para testemunhar a esses meus prezadíssimos conterrâneos os agradecimentos de que me considero devedor á bizarria e cava- lheirosa franqueza com que se dignaram tratar-me. A todos fiquei devendo mui(o favor, e se não aggrego aqui a extensa relação de tantos nomes sympathicos, é porque a tenho n'esta occasião a muita distancia das minhas vistas. Nos diversos capítulos d'este livro citarei porém vários nomes, que julgo associados a este tra- balho pela elevada significação dos serviços auxiliares que repre- sentam.

Não posso deixar em esquecimento as attenções e a coadju- vação que encontrei em todas as auetoridades nas diversas occa- siões em que necessitei recorrer á sua intervenção, assim como os espontâneos obséquios com que numerosas pessoas particula- res se dignaram receber-me em varias terras do meu transito.

Desde o começo dos trabalhos da exploração até uma data

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posterior á do encerramento do museu archeologico do Algarve, alguns periódicos políticos e litlerarios quizeram dislinguir-me com a sua benevolência, engrandecendo os meus modestos ser- viços.

Longe de poder corresponder condignamente a esses bene- méritos do progresso, porque nunca chegam a ser sufficientemente retribuídas estas dividas bonrosissimas, dividas que crescem como decorrer dos tempos, sendo animadoras companheiras da vida e títulos que sempre ficam ennobrecendo o devedor, compe- te-me comtudo, endereçar aos auetores de tantos conceitos pri- morosos, embora immerecidos, o meu mais confraternal protesto de grato reconhecimento, deixando aqui estas poucas palavras para o manterem e memorarem.

Em igual obrigação me julgo também para com alguns sábios estrangeiros, signatários de valiosos escriptos, em que o museu do Algarve e o meu humilde nome ficaram lembrados. Refiro-me prin- cipalmente aos srs. Virchow, Cartailhac, de Laurière, de Ceuleneer e Henri Martin, auetores dos relatórios respectivos aos trabalhos do congresso de anthropologia e de archeologia prehistorica, cele- brado em Lisboa no mez de setembro de 1880, e bem assim aos preciosos escriptos, que o dr. Emilio Hiibner tem publicado rela- tivamente aos monumentos com que organisei a secção epigra- phica.

Ás pessoas que não visitaram o museu e áquellas que, podendo e devendo promover a sua reorganisação, agora muito mais am- pla, o toem deixado ha tantos annos em lamentável abandono, seja-me permittido solicitar a leitura d'esses relatórios, não para que tomem em consideração os mal cabidos louvores de que fiquei devedor á cortezia desses respeitáveis cultores e propagadores da sciencia, mas para que não levem a sua negligencia até o ponto de desprezarem o único museu que em Portugal foi metho- dicamente organisado para representar por epochas distinctas e em ordem geographica as antiguidades de uma província inteira. Dando pois o maior apreço a esses títulos de subida importância com que ficou memorado o museu por mim instituído, compete-me

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neste logar agradecel-os a esses sábios distinetissimos, que tanto me têem honrado.

Ao sr. Cartailhac devo ainda muito mais, porque, parecendo não ter julgado sufíicientes os benévolos louvores com que me havia distinguido no relatório que dirigiu ao ministério de in- strucção publica de França, quiz de novo confirmar e desenvolver as suas anteriores asserções no esplendido livro intitulado Les ages préhistoriques de ÍEspagne et du Portugal, onde representa, descreve e recommenda numerosos caracteristicos das antiguida- des paleoethnologicas mais typicas do museu do Algarve, con- trastando por este modo com o systematico desfavor dos que deviam engrandecer, em vez de amesquinhar, a incontestável significação scientifica d'aquelle conjuncto de padrões monumen- taes.

Envio portanto ao sr. Cartailhac as affirmações do meu mais expressivo agradecimento.

Em vários capítulos d'este livro serei mui gostosamente obri- gado a referir-me aos serviços com que fui auxiliado pelo meu mui presladio conterrâneo o sr. Joaquim José Júdice dos Santos, mas não é demasiado lembral-os desde !

Logo que o governo me incumbiu de organisar o museu, o sr. Júdice dos Sanios, a meu convite, enviou-me immedialamente as suas famosas collecções de instrumentos prehistoricos, acom- panhadas de monumentos e numerosos objectos caracteristicos de varias nacionalidades históricas, que durante muitos annos tinha colligido no Algarve; com essas collecções, methodicamente distribuídas, representei muitos logares indicados na carta ar- cheologica e augmenlei os grupos destinados a comprovação das antiguidades de outros ainda necessitados de bons exemplares.

Emquanto o museu esteve aberto ao publico, o sr. Júdice dos Santos reforçou as suas collecções, enviando-me os objectos que ia adquirindo, e somente retirou tudo, também a meu pe- dido, na occasião em que o museu foi transferido e arrecadado a instancias do inspector da academia de bellas artes sob o pre- texto de carecer do espaço que oceupava!

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Esla prova de confiança com que o sr. Júdice dos Santos quiz distinguir-me, não posso eu deixar de lembrar com muita consideração, assim como o espontâneo offerecimento que me fez num artigo publicado no Districto de Faro, de poder de novo contar com as suas collecções logo que se trate da reorganisação do museu.

Comquanto por vezes haja de referir-me n'este livro a outros bons conterrâneos, a quem fiquei devedor de importantes obsé- quios, cumpre-me deixar aqui indicados os nomes dos que mais contribuíram para o desenvolvimento das minhas collecções e com maior pecúlio para a organisação do museu.

Refiro-me aos cavalheiros, meus distinctos amigos, os srs. Manuel José de Sarrea Tavares Garfias e Torres (de Portimão), João Lúcio Pereira (de Olhão), Sebastião Fernandes Estacio da Veiga (de Tavira), António José Nunes da Gloria, prior de Ben- safrim, e José da Costa Serrão, administrador do concelho de Aljezur.

não posso directamente agradecer á ex.ma sr.a D. Maria do Carmo Estacio da Veiga eTello uma selecta collecção de antigui- dades históricas que reuniu na quinta da Torre de Ares, nem ao sr. Francisco Simão da Cunha a collecção, que me legou, de excel- lentes objectos antigos, descobertos na sua quinta do Arroio, perto de Tavira, porque aos que cessaram de existir, me é licito registrar aqui um preito de respeitosa homenagem em sua memoria.

Compete-me também especialisar o nome do sr. António de Paulo Serpa, hábil empregado na direcção das obras publicas do districto de Faro, pela intelligencia e acerto com que desempe- nhou todos os trabalhos de que o incumbi entre Alcoutim e Al- bufeira, como bem o exemplificam as plantas que levantou e sobre todas as das minas de Ossonoba, e bem assim pela zelosa circumspecção com que dirigiu o serviço da contabilidade, mui intimamente aggregado ao da fiscalisação das explorações.

Para os trabalhos de plantas e desenhos muito concorreu igualmente o sr. João Tavares Bello, a cjuem confiei a direcção

XIV

dcf desenho das estampas que no museu estão coordenadas em pasla reservada; e porque Irato de recordar-mc dos homens mais prestadios que me acompanharam nas minhas Ímprobas excur- sões, não estranhem os meus leitores, que entre tantos nomes dis- tinctos, inclua o de um pobre marítimo de Faro, José Viegas, porque foi elle o descobridor dos jazigos da idade do bronze no Monte da Zambujeira, perto de Castro Marim, um dos mais vigilantes apontadores dos meus trabalhos, e activo empre- gado de inexcedivel probidade; o que me deixou praticamente mais um exemplo de que a honra portugueza é ainda um dos mais immaculados brazões da classe popular d'esta nação.

Não posso deixar em esquecimento os serviços com que me auxiliou o sr. João Nunes Faria, canteiro que reside na freguezia de Santa Barbara de Nexe, a quem incumbi o descobrimento e compra de todos os objectos antigos que podesse adquirir, con- fiando na sua intelligente actividade e no conhecimento que tinha de todo o território da província. Foram muitos os logares com antiguidades que descobriu e numerosas as suas acquisições, mas as que obteve por obsequio de amigos e conhecidos, assim mesmo m'as transmittiu, não me permittindo a minima retribuição,

Os monumentos epigraphicos da Fonte de Apra, da Silveira e do Colmeal, assim como diversos objectos, que em seus logares serão descriptos, são offerecimentos seus para as minhas colle- cções. Comprazo-me pois de poder memorar n'estes termos a honradez e o préstimo de um modesto operário. Outros similhan- tes serviços me fez o sr. António Marcellino Madeira, descobrindo muitos logares com apreciáveis antiguidades na freguezia de Ca- cella, onde vive modestamente do trabalho da sua lavoura, e adquirindo para as minhas collecções excellentes objectos antigos que existiam esparsos em poder de ignaros possuidores.

Em alguns museus de Lisboa achei auxílios mui valiosos.

No museu zoológico da escola polytechnica francamente me permittiu o sr. conselheiro Barbosa du Bocage os estudos que precisei fazer, e no museu mineralógico da mesma escola, onde me foi mister proceder a classificação de vários exemplares pa-

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leontologicos e de alguns instrumentos do pedra de mui difficil reconhecimento apparente, encontrei sempre os mais profícuos auxílios no seu sábio director, o sr. conselheiro Pereira da Gosta, e no meritissimo naturalista adjunto, engenheiro de mi- nas, o sr. Jacintho Pedro Gomes, a quem a sciencia e aquella nobilíssima escola devem mui importantes serviços.

No museu da secção geológica lambem o seu distincto dire- ctor, o sr. Nery Delgado, auclor de preciosas publicações scien- ti ficas, me permiltiu observar os interessantes característicos pa- leoethnologicos alli grupados sob a epigraphe de cada uma das estações exploradas, e tomei varias notas, que hão de ver-se des- envolvidas em alguns capítulos d'esta obra, sendo-me fornecidos apreciáveis esclarecimentos pelo sábio professor da universidade de Zurich, o sr. Paulo Choffat, a quem este paiz deve estudos e publicações da mais elevada importância scientifica, e pelo mui festejado anthropologista, o sr. F. de Paula e Oliveira, ao passo que o insigne mineralogista, o sr. Alfredo Bensaude, procedia com delicada precisão á analyse chimica de alguns dos meus instrumentos de pedra, que á simples vista ninguém poderia clas- sificar.

No museu do Carmo permittiu-me o seu presidente e funda- dor, o sr. Narciso da Silva, que copiasse três placas de schisto gravadas, e de outras placas similhantes, existentes no museu de Évora, me mandou excellentes copias o sr. Gabriel Pereira, erudito archeologo, tão conhecido e estimado no paiz, como bem considerado no conceito de sábios estrangeiros.

Os apreciáveis resultados de valiosíssimos estudos anthropo- logicos com que o sr. dr. Francisco Ferraz de Macedo muito me auxiliou, vão enumerados num capitulo do segundo volume.

Finalmente, um outro serviço importantíssimo, de que carece o terceiro volume d'esta obra, embora não me fosse ainda confiado, julgo poder esperar do meu illustradissimo conterrâneo, o sr. João Bonança, auetor de uma obra de grandioso theor que vae come- çar a ser impressa sob o titulo de « Historia da Luzitania e da Ibéria», com tão extraordinária complexidade de assumptos alta-

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mente scientificos e litterarios. que me faz anciosamente desejar a sua publicidade.- Refiro-me á interpretação dos celebre^ monu- mentos da necropole da Fonte Velha de Bensafrim com inscri- pções 'gravadas em caracteres paleographicos peninsulares, que até hoje ainda ninguém tinha decifrado, mas cujo alphabeto e pro- cessos de applicação á leitura d'esses venerandos padrões da pre- historia da península o sr. João Bonança affirma ter descoberto á custa de muitos annos de aturado estudo e de uma perseve- rança inabalável.

D'este modo, aquelles monumentos, que depositei no museu do Algarve, assim como toda a nummaria celtiberica, as rochas in situ e os artefactos que restam com taes legendas até agora mysteriosas, readquirirão a rediviva expressão de uma linguagem de ha muito emmudecida, que foi fallada e ficou escripta n'esta ultima plaga do Occidente desde tempos remotíssimos, e passa- rão a ser os mais authenticos documentos históricos, geographi- cos, numismáticos e linguisticos, d'essas civilisações quasi igno- radas; e por isso aqui anlicipo os tributos de admiração, que possam ser devidos a um tão corajoso operário do progresso.

Ficam reservados muitos mais nomes para serem inscriptos noutras paginas d'esta obra, em que o meu, de todo o ponto hu- milde, melhor fora que houvesse sido substituído por algum de mais abonada idoneidade.

SUMMARIOS

1 As cartas archeologicas e a sua significação. Conveniência de serem di- vididas em cartas paleoethnologicas ou de archeologia prehistorica, em cartas de archeologia histórica e em cartas monographicas especiacs, tanto de archeologia prehistorica, como de archeologia histórica. Car- tas que podem servir-lhes de base. —Processo mais seguro para a sua elaboração.— Indispensável classificação e ordenação dos critérios locaes que devem representar. Utilidade e deducçòes que se derivam (Testas cartas. Citam-se as que estavam publicadas quando teve prin- cipio a do Algarve, muitas que em seguida foram tendo publicidade e algumas que estão sendo coordenadas. Legenda internacional que ficou determinada para as cartas paleoethnologicas ou prehistoricas em substi- tuição dos anteriores symbolos arbitrários de convenção. É esta legenda internacional empregada pela primeira vez em Portugal na carta prehi- storica do Algarve. Occorrencias que retardaram a publicação d'esta carta. Como devem ser comprovadas estas cartas e como o foi em 1880 a do Algarve? Prevenções respectivas á carta chorographica que a esta serviu de base. Elementos geographicos existentes nos outros paizes para este género de trabalhos. Desenvolvimento que teve esta carta prehisto- rica após os resultados práticos de uma exploração complementar effeituada em 1882. Mostra-se que com a publicação d'esta carta, dos dois pri- meiros livros que representam e descrevem as antiguidades prehistoricas que symbolisa e com a reorganisação scientifica do museu archeologico do Algarve, fica estabelecido o systema a que deve ser subordinado o es- tudo e a representação das antiguidades prehistoricas e históricas do terri- tório nacional . Iniciativa do auclor, levada a vários congressos estrangei- ros para o regulamento definitivo dos signaesde convenção internacional, que deve ser adoptado nas cartas de archeologia histórica. Instrucçòes que acerca d'estas cartas devem ter-se em vista. Observem-se na carta prehistorica os signaes, referentes ás idades que representa, o ináice dos caracteristicos que são descriptos nos dois primeiros tomos d'esta obra e

as listas das terras em que cada um foi verificado la 32

1

II Cavernas. Outros vocábulos com que são designadas no Algarve.

Abysmos, hydrophilacios, ou marmitas de gigantes. Sua formação. Como começou modernamente o estudo scientifico das cavernas. Affir- mações deduzidas d'este estudo com relação á geologia, á paleontologia e á archeolôgia prehistorica. Comprovações do synehronismo das raças humanas com os grandes mammiferos extinctos da fauna antiga, verifi- cadas em varias cavernas de Inglaterra, da França e da Bélgica. Ca- vernas da região sul-oriental da Hispanha. Probabilidades de se acha- rem cavernas ossiferas no Algarve, ou contendo artefactos da industria humana. Mostra-se que n'um limitado numero de cavernas exploradas em Portugal se têcm encontrado abundantes confirmações directas e in- directas de haverem sido habitadas em diversos tempos prehistoricos. Excellentes monographias publicadas acerca d'este assumpto. Insufi- ciência d'estes trabalhos para deixarem reconhecer as raças humanas que viveram rfeste território, a feição paleontologica eas phases por que pas- sou a industria desde as suas mais remotas manifestações. Impossibi- lidade de se inquirir por emquanto a ordem ethnographica das estações troglodytieâs e de se mostrarem as ligações d'essas estações com as de outros territórios. Lamentável falta de estudos fundamentaes. Ra- zões que levaram o auctor d'esta obra a querer emprebender o exame das numerosíssimas cavernas do Algarve e motivos que o impediram. Sim- ples indicação na carta prehistorica de alguns pontos em que ha cavernas . n'esta zona geographica. Noticias concernentes a cada uma das caver- nas indicadas - 33 a 86

III Monumentos megalithicos da architectura paleoethnologica. Me-

nhirs. Alinhamentos. Cromlecks. Antas ou dolmens, synonymos de aras ou altares. Discute-se se o dolmen apparente esteve sempre descoberto ou primitivamente sob tumulus. Opiniões e presumpcões acerca d'este assumpto. Cistos, ou pequenos dolmens. Fundamentos que permittem suppor-se ter havido no Algarve cinco logares em que existiram antas ou dolmens apparentes. Descrevem-se as condições geographicas d'esses logares e indicam-se na carta prehistorica, 2.* colurnna, sob a epigraphe: «Antas ou dolmens que presumptivamente existiram sobre o solo» 87 a 108

IV Critérios neolithicos esparsos, deixando presumir a existência de monu- mentos do mesmo período. Intuitos suscitados por esta presumpção, relativamente aos typos ethnicos que deviam achar-se nas estações pa- leoethnologicas até então não descobertas. Notável facto contradictorio com referencia á emigração de uma raça brachycephala, que se diz ha- ver invadido a Europa. Mostra-se que a raça dolichocephala mantinha na zona do Algarve o seu quasi absoluto predomínio. Reconhece-se que os depósitos até ha pouco considerados quaternários, em que se jul- 2

gou serem paleolitliico-s e dolirhocephalos os eraneos que continham, são simplesmente pertencentes aos tempos geologicamence denominados actuaes e neolithieos. Sob o predomínio da velha raça surge ò sentimento reli- gioso.— O homem julga-se superior á matéria e reconhece em si pró- prio um espirito que o domina; esse espirito" crê ser immortal; concebe a morte como temporária ausência do espirito; e vae mais longe ainda, instaurando o dogma da resurreição. O respeito e a veneração que de- dicou aos mortos abonam a existência d'essas crenças. Indieam-se os jazigos preparados em honra dos mortos e bem assim as habitações dos vivos. As ambições promovem ao mesmo tempo o antagpnisino. Do antagonismo nasce a guerra. As armas de caça são ao mesmo tempo a divisa do guerreiro. A ponta de frecha, o machado de pedra e a adaga de silex substituem todos os argumentos. O mais forte é o vencedor. Muitos ossos depositados em estações neolithicas attestam terem sido pe- netrados por esses instrumentos de guerra. Da necessidade de segu- rança contra os inimigos veiu mui provavelmente a invenção dos legares fortificados, e a das palafittas nas regiões em que havia lagos. Dá-se noticia da lagoa do Boinho entre Tavira e Villa Real, sem se poder affir- mar se foi ou não habitada. Mostra-se que as palafittas existiam an- tes da idade do bronze. Aptidões manifestadas pelo homem neolithico. Origem da agricultura na Europa. Cereaes que eram cultivados. Aproveitamento dos fruetos espontâneos. Pedras para a moagem dos cereaes ; fabricação e cozedura do pão. Desenvolvimento dos meios de alimentação protestando contra a calumnia, que attribue o vicio da anthropophagia áqcelles verdadeiros sectários do trabalho e do progresso. Géneros de alimentação. Bebidas alcoólicas. Industria manufa- ctora. A pedra é a principal matéria prima. O homem faz-se mi- neiro, procurando os jazigos do silex. Olíicinas de trabalho. Ausên- cia de alguns característicos achados n'outras regiões 109 a 142

- Os monumentos. Antas ou dolmens sub tumuli com galerias cober- tas.— Sua distribuição geographica. Falta que faz o museu archeolo- gico do Algarve, reorganisado com os últimos monumentos. Estação mortuária de Aljezur. Planta e perfis. Descripção. Habitações sub-; terraneas adjacentes. Ossos humanos que continha o deposito. Es- caços característicos paleontologicos. Rochas utilisadas em toda a re- gião.— Instrumentos e utensílios de trabalho. Armas de caça e de guerra. Placas de schisto com gravuras. Amuletos, contas e alfine- tes de osso. Urnas funerárias e vasos de suspensão. Monte Amarel- lo. Dolmen coberto não explorado. Artefactos alli achados. Vestígios de habitações terrestres. Carência de explorações entre o Monte Ama- rello e Aljezur e entre Aljezur e o rio Odeceixe. Serro Grande. Dolmen coberto destruído. O que ainda manifestou. Alcalá. Dol- men coberto sob tumuli. Razões por que a planta geral da necrópole

3

de Alcalá passa a ter cabimento no tomo 11. Planta da primeira ex- ploração.— Instrumentos de formas inéditas. Estampas figurando os característicos principaes. Planta c prodactos da segunda exploração. Gracs de pedra e tintas mineraes. Vasos crivados de orifícios. Placa de schisto. Contas de calaítc, de schisto e serpentina. Varias louças. Palmeirinha, Cerca Nova e outros sitios próximos com muitos instrumentos ncolithicos. Monte Canellas, mostrando ser sédc de vários monumentos. Instrumentos de pedra alli achados. Monte da Rocha (Lameira) com um dolmen destruido. Objectos que continha. Serro das Pedras. Dolmen destruido. Desenho das ruinas e dos objectos d'ellas extrahidos. Monumento da Nora. (Advertência a futuros ex- ploradores.)— Planta e perfil. Descreve-se o monumento e o que con- tinha.— Monumento da Marcclla. Planta. Estado dos ossos. In- strumentos desilexede outras pedras. Tintas mineraes. Louças. Cacella. Monumento descoberto ao norte da igreja Objectos d'elle extrahidos. Planta. Estações da Torre dos Frades. Como foram descobertas e o que continham. Dois craneos dolichocephalos intei- ros.— Cerâmica. Vários caracteristicos. Castro Marim. Dolmen co- berto, destruido. Seus caracteristicos. Serro do Castello. Monu- mento aberto, parcialmente destruido. O que ainda manifestou. Va- queiros.— Instrumentos de pedra alli achados. Considerações ge- raes 143 a -305

índice das estampas

PAG.

Est. Carta paleoethnologica do Algarve 1

» A. Aljezur Planta e perfis da estação neolithica e das habita- ções subterrâneas adjacentes 145

» B. Aljezur Facas, serras de silex e uma conta de steatite 162

» C. Aljezur Enxós, machados, escopros e um amuleto 173

» D. Aljezur Pontas de frecha e de lança de silex, dentes fosseis

de squaloides extinctos, e cabeças de alfinetes de osso 193

» E. Aljezur Pontas de frecha, de lanças e lasca cortante de silex 195

» F. Aljezur Vaso de suspensão e outras loucas 203

» I. Serro Grande (Lagos) Característicos de silex e de osso de

um dolmen coberto destruído na quinta da Luz 211

» II. Alcalá Planta, corte e accessorios de um dolmen coberto. . . 215 » IÍA. Alcalá Planta e corte do monumento de Alcalá com rectifi- cações , 218

Alcalá Secções transversaes de vários ossos humanos do mo- numento de Alcalá (no texto) 222

» III. Alcalá Pontas de frecha, de lança e fragmentos de facas de

silex 225

» IV. Alcalá Pontas de frecha e facas de silex, lança de schisto,

contas de calaíte, de schisto de serpentina, cryslal e rocha,

e fragmentos de alfinetes de osso 226

» V. Alcalá Machado, enxó e escopro de pedra 226

» VI. Alcalá Vários instrumentos de pedra 227

» VII. Alcalá Graes de pedra 229

» VIII. Alcalá Placa de schisto com gravuras 232

» IX. Alcalá Fragmentos de louças com ornatos rudimentares. . . . 238 » X. Monte da Rocha (Lameira) Instrumentos de pedra de um dol- men destruído 243

» XI. Serro das Pedras Perspectiva de um dolmen coberto destrui-

dn. (Vejam-se na estampa x os característicos <juc continha) 244

5

PAG.

Est. XII. Nora e Marcella Plantas e perfis de dois dolmens cobertos . . . 249

» XIII. Nora Instrumentos lascados de silex 251

h XIV. Nora Pontas de frecha de silex, crystal de rocha, fragmen- tos de placa de schisto com gravura, artefactos de marfim e

osso 253

» XV. Nora Machados e enxós de pedra 255

» XVI. Marcella Facas, serras e lascas cortantes de silex 261

» XVII. Marcella Pontas de frecha e lanças triangulares de silex. . . 262

» XVIII. Marcella Enxó de schisto amphibolico 202

» XIX. Marcella Machado, escopros de pedra e núcleos de crystal de

rocha 263

» XX. Marcella Placa de schisto com gravuras 267

» XXI. Marcella Placa de marfim com ornatos, gorjal de suspensão,

e fragmentos de instrumentos de osso 268

» XXII. Marcella Louças extrahidas do monumento 273

» XXIII. Marcella Mais louças 274

» XXIIIA. Cacella Planta que marca o logar de uma anta coberta ao

norte da igreja de Cacella 276

» XXIV. Cacella Facas de silex e grande machado de schisto amphi- bolico 276

)) XXV. Cacella Enxós de schisto amphibolico 276

» XXVI. Torre dos Frades Planta de duas estações tumulares 281

Torre dos Frades Estampa, no texto, de dois vasos cerâmi- cos, sendo um de suspensão, extrahidos dos monumentos

figurados na estampa xxvi > 284

» XXVII. Torre dos Frades Planta da anta coberta do Arrife 285

» XXVIII. Torre dos Frades Pontas de frecha e facas de silex, machado de diorite e pingente de osso perforado, pertencentes ao mo- numento do Arrife 286

Serro do Castello (Azinhal) Referencia a uma anta coberta 292 w XXIX. Vaqueiros Machados de pedra, que se julga pertencerem a

um monumento ainda occulto 295

» XXX. Vaqueiros Enxós, fragmento de machado de pedra e outro

de uma placa de schisto sem gravura 295

ERRATAS PRINCIPAES

PAGINA

LINHA

ERRO

EMENDA

1

6

arehcologia

archeologia

3

13

acrescentar

accrescentar

79

27

est. xi

est. n

120

28

extrahidos

extrahidas

133

10

Escapou a seguinte nota : É a doutrina corrente; mas em seu logar mostrarei que o typo Lrachycephalo é anterior.

159

26

E

É

164

est. G

est. E

165

est. G

est. B

170

est. D, n.os 18 e 19

est. D, n.os 17 e 18

188

15

apox

após

209

14

duvida, alguma

duvida alg-uma,

225

3

artefactos, ha

artefactos, de que lia

240

35

instrumentos dcs

instrumentos de

241

35

agricela

agrícola

244

22

o de n. os

os de n.os

260

29

possivel

praticável

282

18

depostos

depósitos

I CARTA ARCHEOLOGICA DO ALGARVE

Tempos prehistoricos

SUMMARIO

As cartas archeologicas e a sua significação. Conveniência de serem divididas em car- tas paleoethnologicas ou de archeologia prehistorica, em cartas de archeologia histórica e em cartas monographicas especiaes, tanto de areheologia prehistorica, como de archeologia histórica. Cartas que podem servir-lhes de base. Pro- cesso mais seguro para a sua elaboração. Indispensável classificação e ordena- ção dos critérios locaes que devem representar. —Utilidade e deducções que se derivam d'estas cartas. Citam-se as que estavam publicadas quando teve principio a do Algarve, muitas que em seguida foram tendo publicidade e algumas que estão sendo coordenadas. Legenda internacional que ficou determinada para as cartas paleoethnologicas ou prehistoricas em substituição dos anteriores sym- bolos arbitrários de convenção. É esta legenda internacional empregada pela primeira vez em Portugal na carta prehistorica do Algarve. Occorrencias que retardaram a publicação d'esta carta. Como devem ser comprovadas estas car- tas e como o foi em 1880 a do Algarve? Prevenções respectivas á carta choro- graphica que a esta serviu de base. Elementos geographicos existentes nos ou- tros paizes para este género de trabalhos. Desenvolvimento que teve esta carta prehistorica após os resultados práticos de uma exploração complementar effei- tuada em 1882. Mostra-se que com a publicação d'esta carta, dos dois primeiros livros que representam e descrevem as antiguidades prehistoricas que symbolisa e com a reorganisação scientiíica do museu archeologico do Algarve, fica estabe- lecido o systema a que deve ser subordinado o estudo e a representação das an- tiguidades prehistoricas e históricas do território nacional. Iniciativa do auctor, levada a vários congressos estrangeiros para o regulamento definitivo dos signaes de convenção internacional, que deve ser adoptado nas cartas de archeologia his- tórica. — Instrucções que ácêrca d'estas cartas devem ter-se em vista. Obser- vem-se na carta prehistorica os signaes referentes ás idades que representa, o indice dos característicos que são descriptos nos dois primeiros tomos d'esta obra e as listas das terras em que cada um foi verificado.

As cartas archeologicas são a manifestação simplificada, o resumo, ou indice figurado por signaes de convenção, das diver- sas antiguidades de cada região geographica a que se referem.

Partindo da idéa iniciada pelas cartas de geographia antiga,

as cartas archeologicas são porém regidas por intuitos muito

mais vastos, abrangendo o máximo alcance possivel em relação

aos elementos que podem directa ou indirectamente confirmar as

1

mais remotas origens ethnicas, o seu desenvolvimento, e os gran- des tractos de distribuição das espécies ou variedades do grupo humano, assim como os mais apurados primórdios e progressos concernentes á historia do trabalho.

Suppoz-se terem sido os sábios das nações scandinavas, Di- namarca, Suécia e Noruega, e os suissos, que, seguindo os me- thodos empregados na geologia e na paleontologia, conseguiram verificar, por uma uniforme continuação de comprovações locaes, a apagada existência de três idades distinctas, relativamente ás origens humanas e a sua industria, caracterisadas por instrumen- tos de pedra, de bronze e de ferro, todas anteriores ás datas dos seus documentos históricos, ficando por isso denominadas pre- historicas; mas esta mesma divisão, sem a minima discrepância, estava feita, escripta e proclamada havia quasi dois mil annos; fizera-a o audacioso poeta latino Tito Lucrécio Garo no seu poema De rerum natura, em seis livros, sem ostentar erudições, nem explicar aonde e como tinha ido indagar os factos, que com a mais restricta clareza e laconismo reduziu a poucos versos, por vezes repetidos, factos que estão. actualmente confirmados em todos os paizes dedicados á cultura da sciencia, e que a própria carta prehistorica do Algarve igualmente comprova na extrema zona sul-occidental da Europa, symbolisando os monumentos neolithicos, os da transição da ultima idade da pedra para a idade do bronze, os da idade do bronze e os da primeira idade do ferro, que também vou representar com suas plantas e perfis e com os característicos mais typicos de cada uma d'essas até ha pouco ignoradas construcções.

Assim, pois, admiravelmente se expressa o famoso poeta epi- curista :

Arma antiqua, manus, ungues, dentesque fuerunt,

Et lapides, et item sylvarum fragmina, rami;

Et flammae atque ignes postquam sunt cognita primúm.

Posteriús ferris vis est, aerisque reperta.

Et prior aeris erat, quàm ferri cognitus usus:

Quò facilis magis est natura et copia major.1

1 Titi Lucretii Cari— De rerum natura libros sex.— Lib. V, pag. 457— Paris, 1680.

Estas notabilissimas revelações, que Lucrécio tão acertada- mente coordenou, são assim interpretadas pelo erudito doutor Lima Leitão, traductor do poema: *

Antigamente

As mãos, as unhas e dentes foram armas, As pedras e das arvores os ramos, Flamma e fogo tão promptos conhecidos. Foi então que a final pôde achar-se O préstimo efíicaz do ferro e bronze : Mas usou-se do bronze antes do ferro, Porque mais fácil trabalhar se pôde, E com mais farta, copia se mostrava.

E continuando a traducção do texto, acrescenta:

Era com bronze que se abria a terra. Com bronze era que a guerra se fazia. Podia-se espalhar feridas vastas, Fazer mão baixa sobre greis e campos. Promptamente cedia o nu e inerme Aquelle que lhe apparecia armado. Pouco a pouco depois foi convertido O duro ferro em fulminante espada E em desprezo caiu de bronze a foice. Rasgou-se o campo desde então a ferro ; Foi a ferro que a sorte das batalhas, Que tão volúvel é, foi decidida.

Aos archeologos do norte não cabe portanto a prioridade d'esta divisão enunciada por Lucrécio, mas a sua mais cabal confirmação scientifica, e por isso os nomes de Thomsen, Nilsson, Forchhammer, Worsaae, Steenstrup e Keller, serão sempre citados como tendo sido os principaes entre os primeiros inspirados obreiros, que arrancaram ao âmago da terra os Íntimos segredos que ella havia occultado á sabedoria antiga.

O engenhoso poeta latino guiou-se porventura pelas tradições que ainda vagamente corriam no seu tempo e soube ordenal-as

A. J. de Lima Leitão A natureza das cousas— tom. II, pag. 167 1853.

com atilada critica; mas as tradições, as lendas e os contos mais ou menos fantasiosos, ou sagas, como se denominam entre aquelles povos septentrionaes, não attingiam tão longínquo alcance no segundo quartel d'este século, porque não ultrapassavam as raias dos tempos históricos, nem explicavam o significado correspon- dente a tantos e tão diversos monumentos e relíquias das gera- ções extinctas, cujas origens nunca ninguém tinha podido in- quirir.

Foram aquelles athletas do progresso os scandinavos e suissos que outorgaram a archeologia uma feição diversa e in- tuitos de todo o ponto audaciosos, associando-a á geologia, á pa- leontologia e á anthropologia, e levando-a como companheira inseparável d'essas sciencias até ás camadas sedimentares dos tempos quaternários, onde jaziam as mais remotas origens da arte, até então achadas, ou os primeiros instrumentos de silex, como formando rochas brechiformes com os fosseis de faunas e floras pela maior parte extinctas, para d'este modo poderem re- ferir a industria humana, senão a uma data chronologica, a uma epocha de contemporaneidade geológica com o que existia naquel- les planos outr'ora habitados por tantas existências posteriormente destruídas.

Foi então que nasceu, permitta-se-me assim dizel-o, a chro- nologia geológica, a chronologia das referencias, a única que po- derá deduzir-se das mysteriosas folhas do immenso archivo da creação. Foi então que para cada facto de manifestação etimoló- gica, directa ou indirecta, se pôde procurar uma nomenclatura, e que para todos se conseguiu ordenar um regulamento de suc- cessão. Foi então, finalmente, que o grupamento das comprova- ções começou a ter organisação scientifica, e considerando-se que tantos descobrimentos preciosíssimos exigiam ser authenticamente registrados e terem a mais ampla propagação, foram logo con- gregados em famosos museus. Thomsen cria na Dinamarca os opulentos museus ethnographicos e archeologicos de Copenhague, organisam-se na Suécia os de Stockholm e Upland, na Noruega os de Christiania, e na Suissa, logo que Fernando Keller desço-

bre as habitações lacustres que povoaram os lagos d'aquella re- gião, fundam-se os riquíssimos museus de Zurich, Genebra, Lau- sanne, Berne e Neuchatel.

A França, a Inglaterra, a Allemanha, a Bélgica, a Áustria, a Rússia, a Hollanda, a Itália, a Turquia, a Roumania e a Hispa- nha, participam activamente do grande impulso scientifico que partia do norte. A Hungria, em 1875 tinha dezoito museus! Chegou aquelle impulso animador até ao Egypto, e fundou-se no Cairo um museu de antiguidades ; chegou á Austrália, e insti- luiii-sc outro em Canterbury; chegou aos Estados Unidos, onde em Worcester, Philadelphia e New-York também famosos museus foram organisados; chegou á America austral, onde o governo da republica argentina encarregou o sr. Moreno de fundar o rico museu anthropologico e prehistorico de Buenos Ayres.

Em Portugal creou-se uma cadeira de geologia; foi regel-a o sábio doutor Pereira da Costa, antigo lente de mineralogia na escola polytechnica de Lisboa. Desde então até hoje tem elle sido o mestre abalisado dos geólogos portuguezes, entre os quaes co- meçaram logo a apparecer aptidões distinctissimas. Creou-se tam- bém uma secção geológica, e sob a direcção de tão digno mestre, emprehenderam-se trabalhos de subida importância. Foi elle o iniciador proficiente da nova sciencia nesta plaga, e fez a sua estreia perante o mundo scientifico, inquirindo e descrevendo magistralmente, como geólogo e archeologo, os kjoekkenmoeddings do Cabeço da Arruda, onde jaziam mais de quarenta indivíduos. Appareceu depois Carlos Ribeiro proclamando a existência do homem terciário com o testemunho dos sílices que descobriu no valle do Tejo, e o sr. Nery Delgado descrevendo as grutas da Cesareda, não sendo eu o ultimo a tomar parte n'esse movimento quasi geral, porque de outubro del865 a abril do anno seguinte, fiz o primeiro reconhecimento archeologico no Algarve, e na carta chorographica a marcação das numerosas antiguidades prehistori- cas e históricas, que tinha descoberto desde os campos balsenses a leste de Tavira até á Foya de Monchique.

Faltava, porém, em cada região explorada, um registro que

pozesse em mutua communicação tantos descobrimentos effeitua- dos, tantos elementos novos e os que a todo o passo estavam tendo ingresso nos arraiaes da sciencia.

Surgiu então o famoso pensamento de serem symbolisados em cartas geographicas ou chorographicas os diversíssimos desco- brimentos effeituados em todos os paizes, passando essas cartas a denominarem-se cartas archeologicas; mas logo se- reconheceu a necessidade de serem divididas em cartas paleoethnologicas,1 ou de archeologia prehistorica, em cartas de archeologia histórica, e em cartas monographicas, de géneros especiaes de antiguidades, tanto prehistoricas como históricas.

A multiplicidade de característicos, que em varias regiões se accumulam n'uns certos grupos de logares extremamente próxi- mos, mostrando a successiva occupação que tiveram desde tem- pos remotíssimos até áquelles em que foram utilisados por na- cionalidades mais ou menos modernas, a muito custo permitte, quando não poucas vezes impede, a sua indicação symbolica em cartas de minguada escala. Esta circumstancia, que não poucas vezes suscita embaraços quasi invencíveis e promove uma inextri- cável confusão, seria por si suficiente para, com reconhecida vantagem, se deverem fazer as referidas divisões. Alem d'isto, havendo numerosos archeologos, que somente se dedicam aos es- tudos paleoethnologicos, auxiliados pela geologia e pela paleon- tologia zoológica e botânica, assim como outros muitos, que ape- nas se occupam de archeologia histórica, a necessidade de serem separadas as respectivas cartas era incontestável. Finalmente, havendo especialistas em diversos ramos da sciencia, exclusiva- mente applicados a estudos monographicos, como succede nos paizes cuja feição archeologica predominante é caracterisada pela caverna ossifera, pela construcção megalithica, pela palaíitta, pelo

1 Paleoeílinologia é termo novo, adoptado em 1865 no congresso de anthropologia e de archeologia prehistorica, em Spezzia, como significando etimologia dos tempos antigos, para substituir a designação, até então usada, de archeologia prehistorica; e pôde definir-se como sendo « a sciencia que estuda as origens e desenvolvimentos da humanidade até o começo dos tempos históricos ».

tumulas, ou por qualquer outra manifestação das sociedades extinctas, a carta correspondente restringir-se-ha a indicar a dis- tribuição geographica do característico estudado.

A base, pois, de qualquer d'estas cartas, tem de ser uma carta geographica, chorographica, ou geológica, se não se poder levantar especialmente uma, que satisfaça ás exigências do tra- balho, cuja escala permitia as mais minuciosas indicações. Ad- optada uma qualquer, em que possam ser inscriptos os signaes de convenção respectivos á especialidade que deve representar, o processo mais seguro será sempre o da investigação directa, explorando-se todos os vestígios apparentes de oceupação antiga, e feita a classificação dos característicos encontrados, cada logar deve ser indicado na carta com o nome que tiver e o seu signal symbolico. Succedendo porém que o descobrimento seja feito num ponto não marcado, determinar-se-ha a sua situação pelas orientações e distancias referidas aos dois mais próximos pontos conhecidos, quando não se possa empregar o systema da trian- gulação.

Designadas d'este modo as estações locaes de cada idade, de cada período, e de cada epocha, faltará achar a ligação d'essas estações nos territórios confinantes, se estiverem representadas pelas suas competentes cartas. Chegará pois a haver um atlas universal, porque para elle existem muitos e preciosos ele- mentos.

Quando cada nação tiver publicado a carta de archeologia prehistorica do seu território, reunidas e ordenadas geographica- mente todas essas cartas, ter-se-ha um atlas para cada uma das grandes divisões da terra, que mui distinctamente mostrará qual foi a distribuição de todos os grupos humanos que a povoaram após as ultimas convulsões cósmicas que levantaram os actuaes continentes submergindo outros que anteriormente formavam o relevo orographico da crusta do globo, ou desde que as enormes geleiras dos tempos geológicos foram abandonando ás faunas e floras os amplíssimos espaços que chegaram a cobrir.

Serão essas grandes cartas que deixarão observar em toda a

parte a feição geral das povoações isochronas ou synchronicas em cada idade ou período da vida humana; as condições da si- tuação geographica em que cada uma surgiu dos regaços da na- tureza, animada pelo supremo espirito creador, ou da selecção a que foi levada por suas necessidades ou tendências ; os crité- rios geológicos, ethnologicos, industriaes ou ethnographicos que distinguem as estações; a definida idade geológica ou epocha ar- cheologica que representam perante os princípios e regras que a sciencia tem preceituado; as relações de identidade ou de simi- lhança nos diversos territórios com referencia ao elemento ethnico e á industria correlativa; se houve transmigrações derivadas dos mais antigos centros de habitação ou de outras origens menos remotas e por onde abriram e seguiram passagem, que orienta- ções procuraram e que trajecto descreveram na sua marcha, onde estacionaram e se desenvolveram, e onde, emfim, se extinguiram; ao passo que outros assaz valiosos corollarios podem juntamente deduzir-se do exame de taes circumstancias, relativos a pátria, raça, usos e costumes d'essas civilisações, autocthones ou emi- gradas, que tantas relíquias deixaram da sua aniquilada exis- tência.

As cartas archeologicas parciaes são portanto os elementos d'esses grandes atlas, que a sabedoria moderna está preparando em todas as nações, em que a sciencia não se julga ser necessi- dade secundaria, ou apparente compostura fictícia, mas uma ra- dical affirmação de progresso.

Em Portugal, forçoso é dizer-se, nunca se tinham inquirido e representado as suas antiguidades com taes intuitos, nem por meio d'este processo fundamental, único á simples vista compre- hensivel, facilmente transmissivo, e de immediata ligação com as dos territórios limitrophes.

Este systema, porém, de representar os critérios archeologi- cos de cada região, laborava, a meu ver, numa deficiência, que era mister supprir-se para que podesse merecer inteiro conceito.

Quem olha para uma carta archeologica, não sabe até que ponto pode ter sido exacta a classificação dos característicos que

symbolisa por signaes de convenção, quer esses signaes tenham partido de uma compilação de noticias transmittidas, quer elles representem o resultado de um estudo directo. No primeiro caso é mister auctorisal-os com a citação dos textos descriptivos, e no segundo compro val-os com os próprios característicos, coordena- dos em museu rigorosamente archeologico.

Foi o que se começou logo a fazer, como disse, e foi o systema que formei e segui, applicando-o ao território, cujas an- tiguidades tinham sido officialmente incumbidas ao meu desco- brimento e exame, antes mesmo de conhecer as poucas cartas archeologicas anteriormente impressas.

O meu pensamento encontrou-se em plena congruência com o que havia surgido ao norte e no centro da Europa.

Começou o trabalho das cartas archeologicas : foi a da Nor- mandia a primeira de que tenho noticia; levantou-a o sr. Leroy de Gany, sendo por este importante serviço premiado em 1859 com uma medalha de oiro pela sociedade dos antiquários d'aquella nação. Em França seguiu-se logo o exemplo, porque em 1860 publicava o sr. Ollier de Marichard a do Bas-Vivarais, e o ab- bade Cochet a do Sena-Inferior em 1864. Como fica dito, a do Algarve, embora ainda sem titulo, foi começada em 1865, e lentamente proseguida até 1877, em que o governo me incumbiu da sua revisão, ficando concluída no anno seguinte e apresentada em janeiro de 1879, sob o titulo de Caria archeologica do Al- garve.

Desde 1865 até 1879 muitas outras cartas foram organisa- das em diversas nações: duas appareceram em França no anno de 1867, a do departamento de Tarn, pelo sr. Caraven, e a da Gallia, desde os tempos mais remotos até á conquista de César, levantada pela commissão da topographia das Gallias. Em 1869 publicou o sr. Edmond Bassac, na escala de 1 : 50:000, a sua muito útil Carta hydrographica, topographica e archeologica do golfo do Morbihan e do seu litoral. Em 1872 publicou o sr. barão de Bonstetten a carta archeologica do departamento do Var. A esta seguiu-se a dos dolmens do Lozère, publicada pelo dou-

10

tor Prunières em 1873, assim como em 1874 foi também le- vada á publicidade, pelo sr. Boisse, a de Aveyron. Em 1874 e 1876 foram apresentadas aos congressos de anthropologia e de archeologia prehistorica, reunidos em Stockholmo e Buda-Pesth, as cartas da Suécia e da Hungria, apparecendo em 1875, na ex- posição de geographia de Paris, as da Suécia, Bélgica e Suissa. Em 1876 foi impressa em Lyon, sob os auspícios do ministério de instrucção publica, a carta da distribuição geographica dos productos da industria metallurgica em França e na Suissa, com o titulo de Études paléoethnologiques dam le bassin du Rhône âge du bronze , pelo sr. Ernesto Chantre, auctor de muitas outras cartas e de grandes obras importantíssimas, referentes ás idades do bronze e do ferro.

Na exposição universal de Paris em 1878, encorporadas na galeria da arte antiga, foram expostas numerosas cartas archeo- logicas, assim como nas salas do ministério de instrucção pu- blica, figurando entre ellas as da Finlândia, Bulgária e ilha de Minorca. a França apresentou dezenove, abrangendo as par- ciaes de muitos departamentos e as geraes do seu território. So- bresaía, porém, entre todas, a da commissão da topographia das Galhas, com a indicação local dos dolniens e dos tumidi, das ca- vernas, dos artefactos do bronze, dos cemitérios merovingianos, etc, etc.

No congresso de Strasburgo em 1879, o sr. Troeltsch apre- sentou a carta prehistorica do SO. da Allemanha e da Suissa. 0 mesmo auctor declarou em 1880, no congresso de Berlin, ter para apresentar a carta prehistorica do Mecklembourg, do Lauen- bourg e Lubeck, baseadas nos descobrimentos dos srs. Lisch, Gross e Handelmann, segundo refere o sr. E. Cartailhac no tomo xii (1881) do seu periódico Matériaux poar Vhistoire primitive et naturelle de 1'homme.

Uma commissão de sábios occupa-se da carta prehistorica de Allemanha. Em 1880, no congresso dos anthropologistas al- lemães, reunido em Berlim, expoz o sr. Fraas o estado dos tra- balhos d'aquella commissão.

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São, emfim, numerosas as cartas archcologicas impressas e em via de publicação, ficando muitas por nomear.

se vê, pois, mesmo por esta incompleta resenha, a impor- tância que nestes últimos vinte e cinco annos se tem dado a este género de trabalhos, sobremaneira áridos, penosos e difíiceis, principalmente quando as cartas são organisadas, como foi a do Algarve, por investigação directa, no próprio território, de logar em logar, e mediante o descobrimento e estudo especial de cada um dos seus mui variados critérios monumentaes e artísticos, sendo ao mesmo tempo levantadas as plantas das construcções, os seus perfis, feito o desenho dos artefactos industriaes, colligi- dos e organisados todos esses numerosíssimos característicos documentaes para a sua authentica comprovação, como fiz com o maior cuidado e mostrei com a fundação do museu archeolo- gieo do Algarve, apresentado em 1880 ao congresso de anthro- pologia e de archeologia prehistorica, e ao publico de Lisboa du- rante oito mezes, sendo porém depois mandado arrecadar numas casas inferiores da academia de bellas artes e num pateo infe- cto e sombrio, que foi cemitério do ex-convento de S. Francisco, onde também ficou sepultado ; o que por emquanto relato sem os devidos commentarios, porque o facto basta para mostrar o lamentoso atrazamento em que este género de estudos se acha ainda neste paiz!

Estando publicadas muitas cartas archeologicas, mas cada uma indicando as antiguidades do seu respectivo território por signaes arbitrários, que difficultavam a leitura e muito mais ainda a sua confrontação, a secção archeologica da sociedade scienti- fica de Cracóvia, propoz-se regularisar a coordenação das futuras cartas, de modo que todas fossem subordinadas a uma legenda internacional, sendo separadas as prehistoricas das históricas. Com este fim nomeou uma commissão especial para tratar sim- plesmente das cartas prehistoricas, sendo seu presidente o sábio conde A. Przezdziecki, o qual deu conta dos trabalhos da com- missão em 1871 ao congresso de Bolonha. Nomeou a assembléa uma commissão para examinar e pôr em pratica o projecto dos

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archeologos de Cracóvia; morrendo, porém, pouco depois, o seu presidente, a commissão não chegou a funccionar.

Renovou este assumpto o sr. E. Chantre, a quem a sciencia moderna deve numerosos serviços do mais alto apreço. O sr. Chantre, reconhecendo os inconvenientes resultantes da falta de um regulamento uniforme e geral para este género de trabalhos, apresentou ao congresso de Stockholmo em 1874 um projecto de legenda internacional para as cartas archeologicas prehistoricas, e o congresso nomeou uma commissão para discutir este projecto e adoptar uma legenda definitiva, composta dos srs. Capellini, representando a Itália; Desor, a Suissa; Dupont, a Bélgica; En- gelhardt, a Dinamarca; Evans, a Gran-Bretanha ; Hildebrand, a Suécia; Léemans, a Hollanda; Lerch, a Rússia; G. de Mortillet, a França; Romer, a Áustria; e Virchow, a Allemanha.

Portugal, se vê, não tinha quem o representasse!

Esta notabilissima commissão, associando logo o auctor do projecto e discutindo o assumpto, delegou os seus poderes numa sub-commissão, unicamente composta dos srs. E. Chantre e G. de Mortillet. Estes dois sábios, tendo em consideração as discus- sões precedentes e as communicações por escripto, que lhes fo- ram dirigidas pelos representantes da Dinamarca, da Gran-Bre- tanha, da Hollanda, da Rússia, da Áustria e da Bélgica, com umas notas do sr. Van der Maelen, auctor da carta archeologica d'aquella nação, redigiram o seu trabalho, estabelecendo as con- venções internacionaes que cada auctor deve adoptar, para assim ficar uniformisada a leitura, ou interpretação das anti- guidades de cada paiz, e deram-lhe publicidade em 1875 no tomo vi da segunda serie da revista mensal, dirigida pelo sr. Cartailhac com o titulo de Matériaux pour Vhistoire primitive et naturelle de 1'homme, e em caderno supplementar impresso em Toulouse.

Quando em 1878 conclui a carta archeologica do Algarve, ignorava a existência dos signaes de convenção determinados pelo congresso de Stockholmo e por isso foi apresentada em 1880 ao congresso de Lisboa com os signaes arbitrários, feitos a cores,

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que tinha adoptado, assim como a carta prehistorica, deduzida da carta geral, que submetti ao exame do congresso.

Notou-me então o sr. Cartailhac a conveniência de serem substituídos os signaes de minha invenção pelos que estavam sendo usados sob a legenda internacional, e regressando ao seu paiz, teve o obsequioso cuidado de me enviar a respectiva ta- beliã.

em agosto de 1881, tendo o governo mandado contratar com uma empreza particular as estampas correspondentes ás antiguidades prehistoricas do Algarve, o original da carta foi en- tregue com a legenda internacional correspondente, e, com effeito, assim chegou a ser desenhado e a serem-me remettidas as pro- vas antes de findo aquelle anno. Vieram, porém, poucos dias antes de ser auctorisado pelo governo para proceder a uma explo- ração complementar em vários pontos da província, onde se tinham casualmente manifestado importantes antiguidades pre- historicas, e noutros onde apenas tinha conseguido fazer um simples reconhecimento em 1878; e devendo a carta indicar to- das as antiguidades descobertas até á data da sua publicação, tive de reter as provas impressas e esperar pelos resultados práticos da exploração complementar, pensando que muitas alte- rações haveria a fazer, por isso que os indícios, que precederam aquella nova exploração, promettiam fartas acquisições. E com effeito não me enganei, porque terminado aquelle trabalho em novembro de 1882, consegui descobrir tudo quanto julguei dever existir, e alem d'isto muitas outras antiguidades não esperadas, taes como uma serie de monumentos de construcções typicas, acompanhados de armas de guerra e de instrumentos de traba- lho, de pedra e de bronze, de louças e de outros artefactos, que permittiam estremar o typo tumular de construcção megalithica da ultima idade da pedra, d'aquelles que visivelmente formavam grupo separado, uns pelo seu género de construcção e outros por seu revestimento interno, onde notáveis instrumentos de pe- dra achei associados a outros metallicos de elevada significação e importância. as plantas e perfis dos famosos monumentos

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descobertos e o desenho dos artefactos mais característicos, que cada um continha, produziram vinte e nove estampas.

Nos logares competentes, em que hão de figurar essas es- tampas, relatarei o valioso auxilio, que recebi, na exploração de Al cala e Aljezur, do meu prestantissimo amigo e conterrâneo, o rev.d0 presbytero António José Nunes da Gloria, então prior da Mexilhoeira Grande e actualmente de Bensafrim, porque foi elle quem, á minha vista, levantou as plantas e fez os desenhos dos descobrimentos effeituados nos dois referidos pontos, com uma exactidão e nitidez inexcediveis, sendo sempre óptimo e constante companheiro meu durante aquelles trabalhos.

Houve, pois, imperiosa necessidade de ampliar mui sensivel- mente a carta e de reformar muitos dos seus signaes de conven- ção, em vista dos critérios com que a necropole de Alcalá veiu mostrar as typicas construcções monumentaes e os artefactos que podem caracterisar a transição da ultima idade da pedra para a primeira dos metaes; o que em parte alguma do reino se tinha ainda achado.

A carta prehistorica teve portanto de passar por uma quasi radical transformação ; mas tudo estava concluído e entregue em março de 1883 á empreza que o governo incumbira do trabalho artístico, e se não teve immediata publicidade, foi porque em 30 de março de 1886, essa empreza acabou de entregar quinze estampas pertencentes a este volume! E como ellas saíram, pela maior parte !

Tudo quanto pertence ao período neolithico será descripto n'este volume e o segundo completará a descripção de todos os característicos até agora descobertos no Algarve, respectivos á transição da ultima idade da pedra para a primeira dos metaes, á idade do bronze e a primeira idade do ferro.

Se d'este modo fica comprehendida a mutua dependência existente entre a carta prehistorica e a obra que deve descrever as suas symbologias, consequentemente deverá também enten- der-se que a authenticidade, tanto da carta como da obra, pôde ser comprovada pelo museu que colligi, e fundei em 1880,

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addicionando-se-lhe, nos logares competentes, os característicos posteriormente descobertos e os existentes em varias collecções particulares.

A carta, a obra e o museu constituem portanto o quadro ge- ral (Testes trabalhos, isto é, um todo homogéneo e inseparável, e completam o systema, inteiramente novo neste paiz, que deve racionalmente reger os futuros trabalhos archeologicos do reino, em vez de se consentir que á concorrência publica se apresen- tem quaesquer museus ou exposições de antiguidades, cujo pro- gramma de organisação não seja scientificamente proposto e competentemente approvado, a fim de que taes instituições, per- manentes ou temporárias, não sirvam para ministrarem á sabe- doria estrangeira, sobretudo, um grosseiro testemunho do atra- zamento em que jaz aqui uma sciencia, que em todas as nações civilisadas está continuamente progredindo.

Por isso, pois, ouso invocar a attenção dos poderes públicos para o museu archeologico do Algarve, que o governo me in- cumbiu de fundar, principalmente para a comprovação directa da carta archeologica, assim como para terem publica exhibição as antiguidades d'esta zona geographica.

E preciso reviver e manter esse museu, inutilmente escon- dido, desde agosto de 1881, nas arrecadações da academia de bellas artes; é mister não confundil-o com qualquer outra insti- tuição, nem alterar a ordem systematica do seu organismo. Deve, emfim, o governo ceder todas as antiguidades provenientes d'esta província ao instituto archeologico do Algarve, que fundei em 1882 na cidade de Faro, porque somente alli poderá o museu ser conservado intacto; alli poderá manter-se congruente aos fins da sua especial instituição; alli poderá progredir, porque as principaes collecções particulares, que são muitas e valiosas em toda a província, contribuirão para o seu enriquecimento ; alli se poderão addicionar-lhe os monumentos que com frequência estão apparecendo em quasi todas as circumscripções municipaes, e porque alli reassumirá a feição geographica que lhe compete, será mais sensível a sua significação e abrirá um novo horisonte

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ao progresso da instrucção superior, de que tanto carece este território, onde não faltam talentos e illustrações para honrarem o paiz, tomando o logar que lhes compete nos grandes certames scientificos próprios d'este século.

A publicação da carta paleoethnologica do Algarve será suf- ficiente para mostrar esta necessidade a todos os entendimentos despreoccupados, que souberem julgar com justo acerto a utili- dade de uma tão conscienciosa reclamação; pois os signaes de convenção internacional que indicam as antiguidades prehistori- cas até hoje alli descobertas, exigem uma comprovação authen- tica, e esta comprovação a pode ministrar o museu com os seus documentos monumentaes devidamente ordenados.

A conveniência que houve em 1880 para se ordenar a fun- dação do museu do Algarve augmentou na razão directa do grande accrescimo de descobrimentos, que a exploração comple- mentar poz á vista. O que a boa razão aconselha, o que a con- veniência scientifica reclama, é que esse museu, essencialmente provincial, seja reorganisado, agora que está muito mais enri- quecido, para ficar, onde deve estar, permanentemente aberto, e apto para a comprovação das cartas prehistorica e histórica d?esta província.

Nos outros paizes não se manda fechar os museus, manda-se que estejam abertos e promove-se o seu progresso. Quem os manda fechar, caminha certamente na vereda do retrocesso.

Terminando as considerações que ficam expendidas, relatarei algumas circumstancias respectivas á coordenação da carta e aos grandes embaraços que me suscitou.

Quando acceitei a incumbência de um serviço tão complexo e dfficil, fui immediatamente indagar na direcção geral dos traba- lhos geodésicos, se este território estava representado na carta chorographica, por ser esta a base que a todos os respeitos me convinha preferir, tanto porque a sua exactidão devera inspirar a maior confiança, como porque a escala de 1 : 100:000 era muito sufficiente para abranger com clareza e precisão local todos os signaes de convenção; mas no anno seguinte deveria começar a

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triangulação de segunda ordem e um anno depois poderia dar-se principio ao trabalho chorographico, o qual ainda não fica- ria terminado d'ahi a dois annos.

A maior carta do Algarve era a que tinha sido publicada em 1842 pelo conhecido escriptor João Baptista da Silva Lopes, e que, segundo se diz, foi levantada em 1826 por um engenheiro residente em Lagos, n uma escala dividida em léguas de 20 ao grau, correspondente a 1 : 200:000 approximadamente, de modo que ficou assim decomposta:

lm : 200:000m 0,n,l : 20:000m 0ra,01 : 2:000m 0m.001 : 200m— 0m,0005 : 100m O millimetro representa portanto 200 metros.

Esta escala, parecendo á primeira vista assaz favorável para a marcação dos signaes de convenção, não nos trabalhos de campo como nos do seu definitivo regulamento, por vezes me deixou reconhecer a sua insuficiência, obrigando-me a um amon- toamento diíficil de signaes nos pontos em que os vestígios ar- cheologicos estavam em grande numero situados a curtas distan- cias entre si, como principalmente os achei na freguezia da Me- xilhoeira Grande.

A própria carta não é rigorosamente exacta quanto á distri- buição das aguas e do relevo orographico, como praticamente al- gumas vezes observei. Tencionando porém transferir para a carta chorographica official a carta geral de archeologia prehistorica e histórica, reservo para então as rectificações que julgue preciso fazer.

Ninguém poderia recorrer á carta geographica do reino, tendo de serem marcadas na zona do Algarve umas trezentas estações archeologicas, tanto mais havendo muitas com caracte- rísticos de diversas epochas, que de modo algum seria possível indicarem-se na diminuta escala de 1 : 500:000.

Nos outros estados da Europa, em que aos estudos geogra- phicos e archeologicos se tem dado a maior acceitação e activi- dade, não se lueta com estas difficuldades fundamentaes, nem com a falta de outros elementos indispensáveis. Com a nota junta

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dou a este respeito um curioso exemplo, transcrevendo a lista, colligida pelo sr. E. Chantre, das cartas de maior escala publi- cadas até 1875 '.

Com relação a livros de sciencia, dá-se quasi o mesmo caso. Procuram-se nas bibliotbecas publicas e apenas em pequeno nu- mero se acham.

Por isso, pois, quando ousei acceitar o encargo de levantar a carta archeologica do Algarve, não desconheci as difficuldades que me estavam reservadas; confiei porém no conhecimento par- cial que antecedentemente havia adquirido do solo d'esta pro-

1 Inglaterra carta na escala de 1 : 063,360 em 1 10 folhas

Áustria 1 : 144,000 » 31

Mera 1:288,000 » 2

Idem 1:432,000 » 2

Baviera 1:050,000 » 112

Idem 1:500,000 » 3

Bélgica 1:020,000 » 450

Idem 1 : 040,000 » 72

Idem 1:160,000 » 4

Bohcmia 1:144,000 » 38

Idem , 1 : 288,000 » 4

Idem 1:432,000 » 1

Dinamarca ... 1:080,000 » 81

França 1:080,000 » 274

Idem 1 : 320,000 » 33

Idem 1 : 864,000 » 4

Hanover 1 : 100,000 » 67

Idem 1 : 250,000 » 4

Hungria 1:144,000 » 198

Idem 1:288,000 » 17

Idem 1:432,000 » 9

Itália central 1 : 086,400 » 52

Antigos estados Sardos 1:050,000 » 91

Idem 1:250,000 » 6

Paizes Baixos 1 : 050,000 » 62

Polónia 1:126,000 » 60

Prússia 1:100,000 » 319

Rússia 1:126,000 » 792

Saxe 1:100,000 » 28

Suécia 1:100,000 » 233

Idem 1 : 200,000 » 28

Suissa 1:100,000 » 26

Idem 1:250,000 » 4

Wurtemberg 1 : 050,000 » 55

Idem 1 : 200,000 » 4

Idem 1 : 400,000 » 1

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vincia e nos estudos que tinha feito, para as aiírontar e ven- cer até onde podessem chegar os meus esforços.

Com effeito, a carta de archeologia histórica, ainda inédita, e a prehistorica, embora no futuro possam ser mui ampliadas em razão de novos descobrimentos, mostram a grande riqueza archeologica d'este território, alcançando até o período neolithico, sem comtudo terem sido exploradas as suas numerosas cavernas por onde devera ter-se começado a exploração geral.

Devo entretanto confessar, que muito sinto não ter podido dispor de uma carta, que representasse com verdade a orogra- phia d'esta accidentada região, a qual muito convinha indicar-se para melhor deixar sobresaír umas certas leis de selecção na distribuição das populações mais remotas e sobretudo as exce- pções que encontrei, principalmente em referencia á idade do bronze; pois que é caso observado noutros paizes, que a civili- sação neolithica geralmente distribuiu o seu trajecto de occupa- ção, preferindo os plan'altos e vertentes das serras, ao passo que os vestígios da idade do bronze são mais frequentes junto das antigas vias de communicação, na proximidade das collinas, nas montanhas e nos flancos marginaes dos rios e ribeiras. Não con- fiando, porém, na exacção do esboço que figura o relevo monta- nhoso e as suas complicadas ramificações, resolvi omittil-o, não por este motivo, como porque na escala de 1 : 200:000, nos tractos mais abundantes de vestígios archeologicos, as curvas de nível poderiam confundir-se com os traços dos signaes de con- venção, dificultando assim a leitura.

Teria também sido mui conveniente, que a carta prehistorica se tivesse podido estampar sobre o plano da carta geológica. Mais facilmente assim se reconheceria, que as cavernas e grutas naturaes occupam sempre as rochas sedimentares, em maior es- cala na serie mesozóica, principalmente na formação dos calcareos jurássicos e em mais crescido numero no jurássico superior. No- tar-se-ía que não nas regiões jurássicas ha cavernas e ves- tígios de occupação, mas também nos terrenos cretáceos, assim como na serie cainozoica, tanto no terciário lacustre superior e

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inferior, como no marino. Observar-se-ía igualmente, que al- guns pontos prehistoricos, que occupam a zona do irias, estão quasi sempre no contacto do jurássico superior, na proximidade de grandes cavernas ou de correntes de agua. Do mesmo modo se reconheceria, que na serie paleozóica, onde impera a maior ari- dez e onde as aptidões do solo são espontaneamente menos pro- ductoras, apenas no carbonífero inferior, mas somente nas mar- gens das ribeiras, ou junto dos seus afíluentes, se acham critérios prehistoricos. Por excepção, houve mui singularmente um dila- tado tracto de rocha eruptiva, que, na serie paleozóica, rompendo os schistos, attingiu nos seus pontos mais elevados as altitudes de 903 e 755 metros sobre o nivel do mar, como foram as ser- ras da Foya e da Picota de Monchique, cujo vall'alto, formado pelas duas serras, apenas raros vestígios de occupação prehisto- rica manifestou em cotas sempre superiores a 400 metros, pro- ximamente ás nascentes das ribeiras de Arão e do Boina. Aos selvagens d'esses tempos remotíssimos não escaparam pois aquel- las encantadoras paragens, cuja orographia actual deve ser a que tinha na terceira idade da pedra, geologicamente ligada á ultima epocha dos tempos quaternários. No capitulo respectivo ás antas ou dolmens, que presumptivamente existiram sobre o solo, expenderei algumas considerações que este caso excepcio- nal parece suggerir.

São muitas e elucidativas as concepções e assaz significativos os corollarios que a critica pode derivar das cartas archeologi- cas. Foi o que me succedeu, observando a carta como ella era após o reconhecimento geral concluído no fim do anno de 1878. N'aquelle reconhecimento, feito a prasos contados, não me foi possível emprehender minuciosas pesquizas em todos os pontos as- signalados com apparentes indícios de occupação antiga, e muito menos empregar continuamente o systema de procurar por tenta- tiva o que a terra occultava aos olhos do observador insciente.

Para levar ao estado de máxima perfeição um tal trabalho, seria indispensável empregar muitos annos de assíduas fadigas, e mesmo despezas avultadas.

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Naquella primeira exploração notei com estranheza, que as extremas estações neolithicas occupassem ao poente o Serro Grande, perto de Lagos, e ao nascente o sitio da Marcella, pouco dislante de Cacella, havendo portanto uma grande distancia d'esle ponto até á margem direita do Guadiana, e muito maior ainda do Serro Grande até á extremidade norte Occidental da provinda. Esta circumstancia me deixou presumir que outras estações deviam ter existido além e áquem dos referidos pontos; porquanto, no seguimento das orientações indicadas, era fre- quente o apparecimento de instrumentos de feição neolithica, ge- ralmente de rochas schistosas (predominando o schisto amphi- bolico), mui similhantes aos d'aquellas ultimas estações e aos das intermédias.

Todas estas reflexões fazia eu em presença da carta, quando em novembro de 1881 o sr. José da Costa Serrão me partici- pava de Aljezur ter alli descoberto a curta distancia da igreja matriz umas covas, d'onde estava mandando extrahir pedra para obras, em que havia muitos ossos humanos, numerosos instru- mentos de pedra lascada, polida e gravada, louças e outros arte- factos, com que em seguida engrandeceu mui bizarramente as minhas novas collecções.

Com estes objectos á vista, notei predominar n'aquelle depo- sito mortuário o característico de numerosas placas de schisto negro, ou ardosiano, com gravuras geométricas, encontrado em quasi todas as estações neolithicas do Algarve; que muitos in- strumentos de pedra eram similhantes aos que tinha achado nos monumentos da Nora e da Marcella, situados quasi na extremi- dade sul oriental da província, que havia uma conta de steatite polida, um tanto parecida com outra de serpentina pertencente ao dolmen coberto de Alcalá, e um vaso de barro de suspensão inteiramente idêntico na forma a outro, de maiores dimensões, encontrado avulso entre Cacella e Villa Real, no sitio da Torre dos Frades, o qual tinha sido achado em 1876 e me fora offere- cido por António Marcellino Madeira, juntamente com três in- strumentos pontagudos de pedra polida, de configuração approxi-

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maciamente cónica. Analysando detidamente todas estas particu- laridades locaes, e combinando as informações obtidas com o resultado da minha própria inspecção em vários pontos, formulei logo, sem a minima hesitação, as seguintes peremptórias propo- sições :

Que a linha central, que ligava as estações neolithicas, des- cobertas até 1878, podia prolongar-se em sentidos oppostos e representar todo o território da província com estações comple- mentares, que mui presumptivamente deviam existir.

Que, sendo similhantes aos de Aljezur alguns característicos ethnographicos encontrados na estação da Marcella e avulso no sitio da Torre dos Frades, alguns kilometros mais próximo da margem direita do Guadiana, nesse sitio devera achar-se uma estação.

Que, existindo uma estação no sitio da Torre dos Frades, o seu seguimento deveria prolongar-se pela orientação do norte, acompanhando a margem do rio, ou haver passado á margem opposta, occupando o litoral andaluz.

Que, sendo privativo do território de Portugal o mui singular característico das placas de schisto gravadas, manifestado em quasi todas as estações neolithicas do Algarve, e mais copiosa- mente na de Aljezur, o proseguimento d'este característico iso- ladamente achado em vários pontos do reino podia ser mar- cado no Alemtejo, na Extremadura e na Beira, até á villa de Ancião.

Gomo todas estas proposições podiam ser demonstradas com o descobrimento das presuppostas estações, com effeito as- sim succedeu, mandando o governo fazer, neste sentido, uma exploração complementar.

Tudo quanto havia aventurosamente dito dever existir, foi achado, assim como outras muitas antiguidades, de que não havia indicio observado, appareceram em numerosos logares.

Os dois primeiros volumes d'esta obra, como disse, des- creverão na sua competente ordem todos os descobrimentos res- pectivos á prehistoria do Algarve, apresentando as plantas e

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perfis dos monumentos e figurados em estampas os característi- cos principaes de cada um, assim como outros muitos que obtive, achados avulso por trabalhadores do campo, nos logares que vão indicados na carta para poderem ser pesquizados por futuros exploradores, que certamente, guiados por este característico, devem ainda encontrar numerosos monumentos. As grandes dif- iculdades estão vencidas.

A carta ganhou com a demora na publicidade, porque se engrandeceu com mais cincoenta e sete pontos archeologicos, que a exploração complementar lhe ministrou.

A carta prehistorica de Allemanha, encarregada ha muitos annos a uma commissâo de sábios, e mais outras que estão sendo desejadas com geral interesse, ainda se estão organisando, e por isso, sabendo-se que n'este paiz é quasi completa a ausência de elementos para se poder levar de vencida um trabalho d'este gé- nero, inteiramente novo pelo systema e pelos fins a que fora destinado, não poderá estranhar-se o retardamento com que hoje apparece, tanto mais que a principal demora provém de não es- tarem logo promptas em 1883 as estampas pertencentes a este livro, como deviam estar, mas agora, que accrescento este paragrapho, para poder declarar que as recebi no dia 30 de março de 1886!

Com a publicação da carta prehistorica do Algarve ficaram portanto estabelecidos, como disse, os fundamentos e o sys- tema, que deverão adoptar-se para o proseguimento do estudo e comprovação das antiguidades existentes nas outras zonas geo- graphicas do reino.

Os que por obstinado capricho ou ignorância quizerem afas- tar-se d'este caminho, inutilisarão o effeito dos seus trabalhos, ficando a meio aeculo de distancia das exigências da sciencia. Os esforços que houverem de empregar para organisarem por outra forma os estudos archeologicos do reino, sejam quaes forem as suas supremacias académicas, scientificas, ou litterarias, fica- rão transviados do único rumo que se deve seguir; e escusado é tentarem engendrar inventários de monumentos nacionaes, que

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nunca hão de conseguir o seu alistamento ; pois não é cousa que se organise com circulares aos municípios, geralmente compostos de individuos pouco versados em archeologia e architectura mo- numental; não se elabora com informações inscientes e desorde- nadas, e muito menos se pode fazer parodiando-se as grandes commissões scientificas, que na França, na Allemanha e noutras nações se occupam do apuramento dos seus padrões monumentaes.

Não foram as municipalidades, nem os informadores sem critério, que apuraram para a grande carta archeologica da França mil seiscentos trinta e oito menhirs isolados, distribuídos por oitenta departamentos, e três mil quatrocentos e dez dolmens. Estes trabalhos se podem fazer quando haja quem os saiba dirigir, tendo-se o bom senso de não se perguntar cousa alguma a quem não possa responder.

O cadastro dos monumentos de uma nação é a carta archeo- logica do seu território, levantada em devida regra e authentica- mente comprovada!

Para a conclusão do meu programma falta-me a publicação da carta de archeologia histórica do Algarve com as respectivas antiguidades divididas em epochas distinctas.

A carta geral, de que deduzi a prehistorica, conserva ainda os signaes arbitrários de minha invenção, esperando por uma legenda internacional, que venha substituil-os. Essa legenda está por mim proposta á sociedade franceza de archeologia.

em diversos congressos se tem alludido a este assumpto, sem que se haja tratado do seu regulamento, como especialmente se fez com relação ás cartas paleoethnologicas.

Cada auctor tem pois tido necessidade de inventar signaes symbolicos para representar as antiguidades históricas que na successão dos tempos ficaram vinculadas nos territórios submet- tidos ao seu exame; o que certamente causa grande confusão e impede a facilidade, que convém preparar para a prompta inter- pretação dos característicos archeologicos de cada paiz.

O sr. Cazalis de Fondouce, publicando em 1879 a sua excel- lente carta archeologica do departamento do Herault, indicou as

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antiguidades prehistoricas até á idade do bronze com os signaes da legenda internacional, e considerando como histórica, para o seu paiz, a idade do ferro, que dividiu em três epochas, para cada uma d'estas designou um signal, abrangendo na ultima a dominação wisigothica. Em relação á historia de França, apenas teve necessidade de accrescentar mais um symbolo para com elle marcar as localidades habitadas no fim da epocha carlovingiana.

A falta de uma legenda universal para as cartas de archeo- logia histórica ha muitos annos é sentida. em tempo do cele- bre De Caumont este assumpto foi algumas vezes lembrado, assim como posteriormente o tem sido por vários interessados. Occorrendo-me, porém, que não podia haver melhor occasião para renoval-o do que perante o congresso annual da sociedade franceza de archeologia, a que tenho a honra de pertencer, ao que em 1883 se reuniu em Gaen, enviei a minha proposta, diri- gindo-a ao sábio secretario geral, o sr. Júlio de Laurière, que tive a fortuna de conhecer em Lisboa, como fazendo parte do congresso de anthropologia e de archeologia prehistorica.

O sr. Júlio de Laurière, distinctissimo archeologo, que tantas vezes visitou o museu do Algarve, e tanto exaltou, por sua ex- trema benevolência, os meus limitados serviços no seu famoso relatório, publicado em 1881 pela referida sociedade, ficou en- carregado por aquelle congresso, juntamente com o sr. conde de Marsy, de incluir este assumpto no programma do congresso que em 1884 se reuniu em Pamiers, no departamento do Ariège.

Os dois sábios acima referidos vão pois formular e propor ao congresso, que ha de reunir-se em Nantes, no mez de julho de 1886, o regulamento dos signaes de convenção para as cartas parciaes e geraes de archeologia histórica. Relativamente a Por- tugal, dignou-se o sr. de Laurière encarregar-me de propor as epochas e os géneros de monumentos históricos, até o século xvi, que se devem indicar por signaes de convenção.

Entendi, porém, não dever arrogar-me este encargo senão com referencia aos descobrimentos e estudos de que fui ofíicial- mente incumbido no Algarve. Para representar as antiguidades

^0

históricas (Testa província, formulei dois quadros com os signaes symbolicos correspondentes aos géneros e epochas a que perten- cem e dei publicidade a este assumpto no n.° 41.° (dezembro de 1885) do Jornal de sciencias mathematicas, physicas e naturaes, pertencente á academia real das sciencias de Lisboa, sob o titulo de projecto de legenda symbolica para a elaboração e interpretação da carta de archeologia histórica do Algarve. Mandei em seguida reproduzir esta publicação num opúsculo, que enviei a todos os institutos scientificos e litterarios, que em Portugal se occupam de estudos históricos, geographicos e archeologicos, a todos os periódicos de Lisboa, Porto, Coimbra e de outras terras do reino que me foram indicados, assim como particularmente a alguns archeologos, a fim de que podessem indicar outras antiguidades históricas reconhecidas no reino, que não achassem nomeadas e symbolisadas nos ditos dois quadros, para assim os poder com- pletar e remetter á mencionada commissão franceza; mas ne- nhuma communicação me foi dirigida, e por isso, quando nas outras províncias houver quem se proponha levantar cartas de archeologia histórica, ninguém poderá increpar-me por alguma omissão, principalmente de signaes radicaes, que haja nos qua- dros exclusivamente respectivos ao Algarve.

Ainda assim presumo não haver muitos mais géneros de an- tiguidades históricas no reino, e por isso poderão servir os qua- dros formulados para as do Algarve, addicionando-se-lhes arbi- trariamente as designações e signaes com que seja mister indicar os que forem privativos de algumas localidades.

Logo, pois, que tenha publicidade a lei das convenções inhe- rentes á elaboração das cartas de archeologia histórica, terão os archeologos, meus conterrâneos, os elementos mais precisos para emprehenderem o levantamento de cartas parciaes das circum- scripções que queiram estudar, tomando por base a carta choro- graphica official, como sendo a única que por emquanto merece preferencia em razão da confiança que deve inspirar e da sua mui apropriada escala.

As cartas de archeologia histórica devem começar pela re-

n

presentação de todos os critérios referentes á epocha preromana, a fim de poderem consignar as cidades que receberam o foro de município, de colónia, ou algum outro privilegio, no primeiro sé- culo do império, e bem assim os característicos archeologicos, averiguadamente synchronicos, ou das populações que occupa- vam esta zona occidental da península hispânica anteriormente ao definitivo domínio romano.

Feito o reconhecimento geral da circumscripção territorial, que se pretende representar na carta archeologica. convém ali- star chronologicamente as nacionalidades que ahi ficaram caracte- risadas, e indical-as na carta pelas suas designações, juntando-se ao signal radical de cada característico o da epocha respectiva, ou tantos signaes radicaes e de epocha em cada logar, quantas foram as nacionalidades que nelle deixaram vestígios da sua existência. Os monumentos totalmente destruídos, havendo noti- cia escripta que os descreva, ou mesmo tradição local que os designe, devem ser marcados na carta, comtanto que não haja duvida relativamente á epocha da sua construcção. Os próprios monumentos modernos de architectura religiosa, civil, ou militar podem igualmente ser indicados.

Para que estas cartas não soffram objecções o possam ser nuthenticamente comprovadas, porque assim affirmarão a sua verdade scientifica, devem ser colligidos todos os possíveis cara- cterísticos, sendo levantadas as plantas e perfis das construcções e figurados por qualquer forma os objectos não susceptíveis de acquisição, e com tudo isso organisar-se um museu de compro- vação.

Quando sueceda acharem -se algumas provas archeologicas em logar não designado na carta chorographica ou geographica, que se tenha adoptado, esse logar deve ser determinado por triangulação sempre que seja possível, ou por approximação, to- mando-se as orientações e distancias referidas aos dois pontos mais próximos, que na carta estejam indicados.

Se num ponto qualquer da exploração apparecer algum ca- racterístico isolado, cuja epocha não se possa precisamente cias-

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sificar, mas simplesmente presumir, a sua marcação deve ser acompanhada do signal de interrogação.

Tendo-se em vista todas estas prevenções, a carta ficará sendo o cadastro das antiguidades históricas do território que representa, e uma parcella preparada para occupar o logar que lhe competir na carta archeologica geral do reino.

Estes trabalhos parciaes serão portanto elementos de muita utilidade, que os archeologos nacionaes podem ir coordenando como collaboradores da grande obra, que deve um dia represen- tar as antiguidades monumentaes d'este paiz, se ficarem compe- tentemente comprovados e descriptos.

No terceiro tomo d'esta obra, a que pertence a carta de ar- cheologia histórica do Algarve, tratarei este assumpto com o des- envolvimento que reclama. Entretanto mais algumas noções se podem desde achar no trabalho preparatório, que publiquei no mencionado Jornal das meneias mathematicas, physicas e na- tnraes da academia real das sciencias.

Aos sábios archeologos portuguezes, aos meus illustrados collegas nas sociedades scientificas, a que tenho a honra de per- tencer, e a todas as mais pessoas competentes submetto o exame consciencioso da carta paleoethnologica do Algarve, solicitando os salutares reparos e amigáveis advertências, que julguem con- veniente dirigir-me, para assim corrigir os erros ou supprir as omissões que hajam de notar, a fim de poder aproveitar as suas judiciosas indicações quando houver de passar a maior es- cala, e sobre uma carta mais correcta, a representação geral das antiguidades prehistoricas e históricas d'esta zona meridional do nosso paiz.

Aos sábios, que forem sinceramente bem intencionados, bas- tará olharem com alguma attenção para o primeiro trabalho que neste género se publica em Portugal, representando as antigui- dades prehistoricas até hoje verificadas numa província inteira, para comprehenderem quantos descobrimentos significa, quão aturadas fadigas e grandes difficuldades me foi mister empregar e vencer jjara poder agora abandonal-o á luz da publicidade.

Este trabalho seria certamente muito mais perfeito, se hou- vera sido encarregado a uma corporação scientifica, que entre os seus mais abalisados especialistas repartisse a complexidade dos assumptos, que abrange no seu conjuncto; muito mais substan- cioso seria, muito maior auctoridade ficaria tendo. Fiz. porém, o que me pareceu ser mais acertado, e para que não peccasse por falia de authenticidade, recorri á comprovação directa, colligindo e coordenando os critérios archeologicos locaes no museu que fundei em 1880, para com elles comprovar os signaes da legenda internacional.

Nada mais estava ao alcance dos meus limitados esforços.

Com a carta á vista, se observará que o período neolithico, a idade do bronze e a primeira idade do ferro constituem os ca- racterísticos paleoethnologicos d'esta região. A epocha de transi- ção da ultima idade da pedra para a idade do bronze, admira- velmente bem caracterisada em Alcalá, não vae indicada com signal próprio, por não o haver no quadro geral da legenda in- ternacional; o que deixa presumir que este característico ainda não estava determinado na Europa quando em 1875 se for- mulou a lei das convenções, auctorisada pelo congresso de Sto- ckholmo.

Se alguns instrumentos de feição paleolithica existem no museu do Algarve, devo declarar não haverem sido achados em condições geológicas, e por isso não ousei indicar estações pre- neolithicas. Poderão porventura mostrar que essas relíquias ainda eram conservadas na idade da pedra polida, como recordação veneranda da velha raça que foi testemunha paciente das enor- mes convulsões que parcialmente modificaram o relevo da crusta terrestre, que vira separar do continente europeu, a retalhos in- sulados, o actual archipelago britannico, que assistira á porten- tosa alliança do Atlântico com o Mediterrâneo pela submersão da montanhosa ponte que ligava as columnas de Hercules e com- municava a Africa com a Europa, e que ainda em meio d'essas oscillações immensas pôde sobreviver e transmittir-se até os nos- sos dias, sem que a nova raça brachycephala, que lhe succedeu,

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como se pretende, e com ella se mesclou, podesse todavia ani- quilal-a.

Ninguém sabia, e talvez ninguém suppunha, que a região algarviense occultava preciosos thesouros de tempos tão remotos, que nenhuma chronologia pode alcançal-os; mas julguei-o eu, e julgo que outros ainda anteriores devem ser achados alli mesmo, quando neste paiz houver mais dedicação pela sciencia, ou quando o paiz tiver percebido que não hão de ser as sommas despendidas no perenne combate das facções partidárias, que chegarão a levantar o seu nivel intellectual ao ponto de poder equiparar-se ao dos povos mais cultos, mas aquellas que forem applicadas ao desenvolvimento da sciencia, porque á sciencia cabe essa transformadora missão, esse portentoso privilegio.

Pois com que racional fundamento poderia presumir-se que esta derradeira região Occidental da terra, tendo sido inteira- mente habitada na ultima idade da pedra, por um povo que foi constructor dos dolmens monticulados de Aljezur, do Monte Amarello, do Serro Grande, de Alcalá, do Monte Canellas, do Monte da Rocha, do Serro da Pedra, da Nora, da Marcella, de Cacella, da Torre dos Frades e do Serro do Gastello, não tivesse tido um mais antigo habitador, um predecessor que surgisse do mesmo supremo influxo, que outorgou á natureza a geradora fa- culdade da creação de quantas faunas e floras cobriram a su- perfície do globo?

N'este tracto de terra, que as aguas banham por três lados, não se acharam ainda, certamente, inconcussos vestigios das pri- meiras gerações humanas em depósitos propriamente geológicos, talvez porque ninguém se propoz procural-os aonde somente po- dem ser achados!

O philologo, que emprehende reunir e ordenar as provas do- cumentaes das sociedades modernas para escrever a sua histo- ria, corre aos archivos, interpreta os códices, extracta e trans- creve os padrões paleographicos.

Para porém se escrever a historia das sociedades extinctas, não ha senão um archivo, archivo immenso, que abrange

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toclas as regiões da terra; archivo, cujos códices são as rochas sedimentares accessiveis á observação, e as folhas d'esses códi- ces, as camadas que constituem a sua formação. E, pois, n'essas mysteriosas folhas, se escaparam ao metamorphismo produzido pela acção plutonica ou a outros agentes de destruição, que fica- ram registrados em rigorosa ordem os factos mais essenciaes para o estudo critico da etimologia geológica. Não ha nessas folhas nomes escriptos por signaes calligraphicos para exprimirem a existência de todos os mimos da creação, mas os próprios seres que foram creados, fazendo parle integrante da contextura des- sas folhas, feição de hieroglyphicos que nellas ficaram estam- pados, cuja interpretação cabe somente ao intimo concurso da geologia, da paleontologia e da archeologia, desde que surgem as primeiras manifestações da industria humana.

Mas não me foi licito inquirir testemunhos geológicos nesta legião. Os próprios mais importantes critérios neolithicos julgo não estarem ainda descobertos. Uns e outros achar-se-hão, mui presumptivamente, na serie assaz extensa das cavernas jurássi- cas. Procure-os quem os souber descobrir e conhecer, porque deve achal-os, como se poderá deduzir do que vou relatar no capitulo seguinte.

Ainda assim, são numerosíssimos os pontos indicados na carta paleoethnologica com vários característicos neolithicos. Es- cusado é repetil-os aqui, estando todos figurados na carta e geo- graphicamente ordenados nas columnas respectivas a cada epi- graphe. E exclusivamente d'esse período que tem de occupar-se este primeiro livro; o segundo, como se pode julgar pelas epi- graphes restantes, abrangendo mais variedade de assumptos, suscitará porventura maior interesse.

II

CAVERNAS

SUMMARIO

Cavernas.— Outros vocábulos com que são designadas no Algarve.— Abysmos, hydrophi- lacios, ou marmitas de gigantes.— Sua formação. Como começou modernamente o estudo scientifico das cavernas.— Affirmações deduzidas d'este estudo com rela- ção á geologia, á paleontologia e á archeologia prehistorica.— Comprovações do synclironismo das raças humanas com os grandes mammiferos extinctos da fauna antiga, verificadas em varias cavernas de Inglaterra, da França e da Bélgica.— Ca- vernas da região sul oriental da Hispanha.— Probabilidades de se acharem caver- nas ossiferas no Algarve, ou contendo artefactos da industria humana.— Mostra-se que n'um limitado numero de cavernas exploradas em Portugal se toem encontrado abundantes confirmações directas e indirectas de haverem sido habitadas em di- versos tempos prehistoricos. Excellentes monographias publicadas ácêrca d'este assumpto. Insufficiencia d'estes trabalhos para deixarem reconhecer as raças humanas que viveram n'este território, a feição paleontologica e as phases por que passou a industria desde as suas mais remotas manifestações. Impossibilidade de se inquirir por emquanto a ordem ethnographica das estações troglodyticas e de se mostrarem as ligações d'essas estações com as de outros territórios. La- mentável falta de estudos fundamentaes.— Razões que levaram o auctor d'esta obra a querer emprehender o exame das numerosíssimas cavernas do Algarve e motivos que o impediram. Simples indicação na carta prehistorica de alguns pontos em que ha cavernas n'esta zona geographica. Noticias concernentes a cada uma das cavernas indicadas.

Sob a denominação de caverna correm confundidos vários termos de equivalente significação, laes como furna, algar, gruta e lapa, que todavia poderiam ser estremados com restricção es- pecial, tendo-se em apurada conta o sentido, mais popular que li l (erário, com que a gente campesina emprega cada um d'esses vocábulos.

Pela designação de furnas são assas conhecidas no Algarve as cavernas da costa maritima, ao passo que na região sertaneja ou serrana se denominam algares, sobretudo se as suas entradas são abertas na rocha a feição de poço, se dão entrada ás torren- tes pluviaes e medem grande profundidade.

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Não é tão nomeada a gruta como o são a furna e o algar, e comtudo os habitantes do campo sabem distinguil-a, applicando o termo a certas cavidades de limitadas dimensões, que podem ser utilisadas para abrigo de gados e pastores.

De todas as mencionadas palavras a menos vulgar é a lapa, que mais geralmente se refere, não tanto a covas e nichos que se acham em rampas de montes e n'outros logares, como a gran- des chapas de rochas estratificadas, que se destacam das pedrei- ras ou se encontram isoladas e dispersas.

Cabe neste logar, embora como simples curiosidade, que o viajante pode admirar no tracto da raia marítima, comprehen- dido entre a ponta de Sagres e a occidental de Albufeira, a no- ticia de umas formações, de todo o ponto singulares, devidas á acção erosiva das aguas e a outras causas ou agentes naturaes, a que promiscuamente se dão os nomes de fojos, pegos e abysmos, sendo este talvez o mais apropriado, se ao mesmo tempo se lhe juntar o de precipícios, como de feito o são para os incautos e desprevenidos, que percorrem os logares em que existem uns tão pavorosos phenomenos da natureza.

No curso de geologia, regido na escola polytechnica de Lis- boa pelo sábio decano d'aquelle illustradissimo professorado, o sr. conselheiro dr. F. A. Pereira da Costa, abalisado mestre dos geólogos portuguezes, a quem as sciencias physicas e naturaes, e a archeologia prehistoríca devem serviços do mais elevado al- cance, que em tempo algum, sejam quaes houverem de ser os progressos d'essas sciencias neste paiz, poderão ficar em des- lembrança, consta-me haver o mencionado sábio lente de mine- ralogia e geologia, antigo director daquella escola e meu também antigo e sempre respeitável mestre, feito referencia a essas con- strucções naturaes da costa marítima do Algarve, dando-lhes porém a denominação especial de marmitas de gigantes. Nunca assisti ás prelecções em que o sapiente professor se tem occu- pado d'este assumpto e por isso não estranharão os seus moder- nos discípulos, se alguma vez honrarem os meus escriptos com a sua leitura, de não o acharem aqui tratado com tanta profi-

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ciência e lucidez como lhes foi ensinado, ficando advertidos de que o meu principal intuito se limita simplesmente a registrar, no género caverna, a marmita de gigantes, a que mais vulgar- mente, como disse, ouvi dar a denominação de fojo, pego, ou abysmo, mas que n'um documento official tem ainda outro nome.

As denominações de marmita de gigantes, de caldeira, ou pot-holes dos inglezes, applica Beudant \ no seu curso elementar de geologia, sob a epigraphe, Effets des chutes d'eau, não tanto ás cavidades que no leito das ribeiras, e mui provavelmente no de mares pouco fundos, são produzidas pelo redemoinho das aguas que dão movimento giratório ás areias e calhaus que as torrentes arrastam, e a que se geralmente o nome de turbi- lhões ou de sorvedouros, porém mais especialmente áquellas cavi- dades que se acham em terrenos elevados, e fora da acção de qualquer queda de agua; e com este fundamento, talvez, appli- cou o sr. dr. Pereira da Costa a denominação de marmitas de gigantes ás enormes caldeiras da praia elevada do Algarve constituídas, e para dar melhor idéa da causa que as produziu, incluiria no grupo geral as que ainda estão em via de formação.

Uma diversa nomenclatura, hoje esquecida, ou antes desco- nhecida, foi imposta a essas caprichosas construcções naturaes no fim do século passado, quando o benemérito conde de Valle de Reis, Nuno José Fulgencio de Mendoça e Moura, sendo gover- nador e capitão general do Algarve, mandou levantar a planta das fortificações de todo o litoral marítimo pelo tenente coronel José de Sande e Vasconcellos. Este engenheiro, no seu trabalho inédito, intitulado Mappa da configuração de todas as praças, fortalezas e baterias do reino do Algarve2 representa a rocha de Sagres para poder figurar a fortaleza, a praça, e a bateria, que existe na extremidade propinqua ao oceano, e nesta planta marca os logares em que ha dois d'esses famosos abysmos, dizendo numa nota: «Bocas de dois hydrophilacios, que são uns vácuos sub- terrâneos cheios de agua que respiram para a superfície da terra».

1 Beudant— Géologie—Cours Élèmentaire ^ng. G9 e 70 18G5 1 le édition. Existe, e por mim tem sido visto, no archivo do ministério da marinha.

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A planta de Sagres não tem escala e por isso não posso de- signar as distancias em que estão os hydrophilacios relativamente á bateria da ponta de Sagres, de que mais se approximam do que das muralhas da praça.

Na celebre obra do sr. Major, Vida do infante D. Henrique, traduzida do inglez pelo sr. José António Ferreira Brandão, e mandada publicar em 1876 pelo sr. duque de Palmella1, meu antigo condiscípulo no primeiro e segundo anno de mathematica na escola polytechnica, vem uma planta da península de Sagres (pag. 107), em que é figurado a um quarto de milha ingleza para o sul um d'esses pavorosos abysmos. Devo, porém, advertir o viajante que visitar aquelles logares, que o primeiro hydrophi- lacio ou abysmo, seguindo-se da praça para a bateria, acha-se á esquerda, um tanto ao nascente, e o segundo muito mais perto da bateria no lado opposto, e por isso pode passar entre elles e observal-os com prudente cautela, quando não prefira levar um guia, que o encaminhe por aquelle admirável isthmo2, que as embravecidas ondas do oceano, em dias procellosos, parece quererem subverter, não obstante estar sobre o nivel das aguas em altura de 39 metros, como indicando o único ponto do mundo que o brio nacional deve preferir a quantos hão sido indicados para ser honrado e honrar-se com uma estatua de bronze levantada em memoria do preclarissimo infante de Por- tugal.

Os hydrophilacios ou marmitas de gigantes occupam na sec- ção marginal e propinqua ao oceano, entre Sagres e Albufeira, vários pontos da praia elevada, em que imperam as formações do jurássico superior, do terciário marino e lacustre e do cretá- ceo inferior. A sua configuração geral é approximadamente a de um poço de larguíssimo diâmetro com abertura irregular na base,

1 0 sr. duque de Palmella fez-me a honra de obsequiar-me com um exemplar, que aqui agradeço a s. ex.a

- A península de Sagres, do norte ao sul, partindo do antigo pedestal da cruz, mede de extensão mais de 5 milhas inglezas e na maior largura, de oeste para Teste 2 y3 . Ve- ja-se a planta publicada pelo sr. Major.

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mais ou menos ampla, em communicação com o mar, variando a sua profundidade, ou altura do eixo vertical, na razão directa da cota de nivel do solo superficial com referencia á das aguas sal- gadas.

Quando nas rochas, de que se compõem as praias altas, ha fracturas naturaes ou accidentaes, provenientes de retracções, de violentos abalos da terra ou de outras causas, em contacto com o mar, bastam estas duas simultâneas circumstancias para se operar a formação dos abysmos ou marmitas de gigantes. As on- das, arremessando-se com impetuosa violência, invadem o âm- bito d'essas anfractas fendas, produzindo na sua ascensão um violento attrito, que necessariamente promove o alargamento gra- dual do espaço em que é exercido. Não é porém a força impul- siva que recebem as aguas invasoras o poderoso agente do alar- gamento e muito menos ainda da configuração proximamente circular, que manifestam esses amplos precipícios em cujo fundo o incessante embate das ondas produz pavorosos estrondos, si- milhantes a fortes detonações. Dada pois a simultaneidade das preditas circumstancias num determinado logar, se a ascensão da massa liquida, que invade as fendas das rochas até acima da superfície do solo fracturado, é a causa que origina essas tão singulares formações, a sua queda, obedecendo ás immutaveis leis da attracção universal, descobertas por Newton e sancciona- das por Cavendish, as desenvolve e acaba, porque essa queda é determinada pela gravidade inherente a todos os corpos terre- stres, ou força que incessantemente os attrahe para o centro da terra, sendo n este caso os seus principaes elementos a den- sidade do corpo liquido que se elevou e a reacção da sua veloci- dade adquirida regidos pela força centrifuga no seu descente movimento accelerado, da qual resulta uma poderosa acção ero- siva de rotação contra as paredes das fendas e consequentemente a configuração de taes formações.

Em resumo, póde-se portanto dizer, que o continuo trabalho das ondas, determinado por leis e forças naturaes em todos os seus movimentos, invadindo as fendas das rochas fracturadas,

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propinquas ao oceano, é a causa que produz os abysmos deno- minados hydrophilacios ou marmitas de gigantes.

No caminho que vae do apparatoso cabo Carvoeiro, massa compacta de cretáceo inferior, para a ermida e bateria da Se- nhora da Rocha, construída sobre uma extensa formação de ter- ciário lacustre superior, existe um d'esses abysmos, assaz pro- fundo, cujo diâmetro não medirá menos de 30 metros, e como este se encontram outros muitos no rumo de poente até á ponta de Sagres, como ficou dito. Convém pois não transitar por esses togares, em que de repente o incauto viajante pode achar-se á beira de um precipicio, sem levar um guia que o saiba encaminhar com a precisa segurança. Alguns d'esses abysmos podem ser vi- sitados pela praia sem grande difficuldade na hora de baixamar, e não soprando ventos rijos dos quadrantes do sul; mas escusado seria quererem-se procurar vestígios de aproveitamento humano n'esse género de cavernas, que a natureza parece ter formado para caprichoso respiradouro das tempestades do mar.

O estudo scientifico das cavernas occupa ha muitos annos a actividade intellectual dos sábios mais dedicados ás sciencias na- turaes, á historia da humanidade é da industria prehistorica, po- dendo dizer-se que os resultados d'este estudo, tão complexo e variado pelas suas intimas e mutuas dependências, vieram vin- cular em nossos dias uma serie de affirmações importantíssimas, que as gerações precedentes não poderam congregar.

Desde antigos tempos correm vagas noticias e tradições rela- tivamente ás cavernas e não poucas se encontram dispersas em obras de escriptores clássicos, gregos e latinos. Vários geogra- phos, historiadores e poetas da antiguidade fallaram por vezes d'esses mysteriosos edifícios, que a natureza construiu e escondeu no âmago da terra; ficou porém como reservado para o presente século o reconhecimento geológico, paleontologico e archeologico, destinado á comprovação das epochas e das condições de jazida em que n'esses recônditos depósitos se hão manifestado ossos humanos, ou productos da industria do homem, associados aos despojos dos grandes mammiferos extinctos, ás ossadas de ai-

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guris ainda viventes, mas emigrados em regiões glaciaes desde as modificantes evoluções por que passou a crusta do globo após o período post-plioceno, e finalmente ás espécies da fauna actual; o que veiu logo mostrar que as raças humanas, desde as suas mais remotas manifestações, utilisaram as cavernas.

Pode, pois, affirmar-se, que ás cavernas devem poderosos subsídios de elucidação a geologia, a paleontologia e a archeolo- gia prehistorica. Se não fossem as suas tão significativas revela- ções, a sciencia não teria attingido os complexos desenvolvimen- tos que actualmente a constituem, ou antes a estão preparando para ainda emprehender novas soluções sobre muitos assumptos em discussão.

Em todas as regiões da terra ha cavernas naturaes, devidas a diversas causas, que promoveram e promovem a sua formação e desenvolvimento, bem como uma multiplicidade de modifica- ções em harmonia com as oscillações e movimentos que os agen- tes dynamicos ou forças motrizes e as acções chimicas continua- mente exercem no interior da crusta, composta de muitos e di- versos elementos.

Até ha poucos annos julgou-se que as cavernas somente se podiam formar nas montanhas jurássicas, porque nessas rochas são mais frequentes, com effeito, as grandes cavidades, desloca- ções, abatimentos locaes e fracturas mais ou menos consideráveis, como resultado da natureza especial d'essa formação, das acções plutonicas, da retracção e exsicação dos stractos e da erosão; mas a observação tem verificado a sua existência nas series sedi- mentares, principalmente na mesozóica e cainozoica, comquanto nas regiões propriamente calcareas sejam mais vastas e muito mais abundantes.

E o facto que também se verifica no Algarve e se mostra, posto que em minguada escala, com a indicação, feita na carta prehistorica, de algumas cavernas mais conhecidas n'esta zona geographica.

Não será mui difficil ao leitor instruído reconhecer a natureza dos terrenos em que vão marcadas as cavernas a que me refiro,

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lendo á vista a carta geológica do reino e reduzindo á sua escala de 1 : 500:000 a do Algarve, que está approximadamente na proporção de 1 : 200:000. l

D'este modo se observará, pois, que algumas cavernas do litoral marítimo estão abertas em rochas diversas daquellas em que se acham as da região central, e que, exceptuando as rochas eruptivas, e a maioria (talvez a totalidade) das da serie paleo- zóica, nas outras duas series sedimentares ha mais ou menos cavernas e grutas. Faça-se um estudo especial neste sentido, que as confirmações não tardarão.

Foi no primeiro quartel d'este século, que em Inglaterra ap- pareceu uma obra intitulada Reliquice diluviaria?. N'esta obra, publicada em 1823, reuniu o dr. W. Buckland os elementos até então mais averiguados, e negou absolutamente o synchronismo da vida humana com a dos grandes carnívoros e pachy dermes da fauna antiga. Produziram geral sensação na Europa as afir- mações do rev.d0 Buckland, e em Inglaterra, arraigando convic- ções profundas, dispozeram de tal arte os espíritos, que qualquer facto com que alguém pretendesse provar o contrario do que ficara escripto, com todos os foros apparentes de uma auctori- dade ecuménica, era immediatamente repellido com a mais formal impugnação.

A França meridional reagiu, porém, pouco depois contra o positivismo biicldandiano, iniciando-se no estudo directo de algu-

1 Quando a carta archeologica estava concluída, occorreu-me a idéa de ampliar até á sua escala a carta geológica do reino e fazer-lhe a applicação das cores e signaes de convenção correspondentes, a fim de se poder promptamente reconhecer a natureza dos terrenos em que se acham as cavernas e d'aquelles que haviam sido aproveitados pelas diversas civilisações que precederam, desde os tempos mais remotos, as naciona- lidades históricas na occupação d'este solo. Este melhoramento teria certamente sido muito útil; mas o trabalho artistico da carta prehistorica, como primeira parte da carta archeologica geral do Algarve, estava contractado pelo governo com uma empreza particular e esta innovação viria originar embaraços, talvez insuperáveis, como logo suppuz, e por isso não ousei endereçar ao governo proposta alguma n*este sentido; e pensando d'este modo não me enganei, porque bastaram as ampliações que tive de ad- didonar ao original da carta prehistorica em consequência dos descobrimentos que havia feito n'uma exploração complementar em 1882, para a sua publicação soffrer re- tardamento, não obstante haverem ficado na posse da referida empreza, desde o mez de março de 1883, todas as alterações que se deviam fazer.

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mas cavernas do seu território dois sábios geólogos, cujos nomes e profícuos emprehendimentos serão sempre invocados com grata recordação.

Tournal e Ghristol foram pois os dois athletas, que rompe- ram as trevas em que jaziam as cavernas, alumiando-as com os fachos da sciencia e trazendo para o fórum da publicidade a de- nunciação dos seus recônditos segredos.

As lendas e tradições suggeridas pela fértil imaginação po- pular e os mysterios, maravilhas e preconceitos que assignalavam esses sombrios, tenebrosos, mas esplendidos e imponentes monu- mentos architectados pela própria natureza, vieram soffrer sobre as aras da sciencia o sacrifício do menosprezo, para cederem á verdade, á critica e á soberania dos factos a palavra imperiosa da sabedoria acerca da sua origem e dos seus destinos.

Corria o anno de 1828, quando o geólogo narbonnez M. Tournal, tendo explorado no departamento de Aude a caverna de Bize, annunciou ao instituto de França e aos sábios do seu paiz haver descoberto ossos e dentes humanos no mais baixo deposito do lodo e da brecha cimentada por stalagmites, mistu- rados com restos de cerâmica rudimentar1, conchas de molluscos terrestres de espécies existentes e ossos de mammiferos parcial- mente extinctos 2, pertencentes aos primeiros tempos do período quaternário, verificados por Gervais, e de outras espécies ainda viventes, ossos que Mareei de Serres verificou em identidade de estado chimico e que Cuvier reconheceu como rigorosamente fos- seis. Este descobrimento, embora acolhido com reservada circum- specção pelo instituto de França e por diversos sábios, tanto mais desde que Eduardo Larlet alli descobriu o Bison curopceus, e o Cervus tarandus (renna), que não viveu em tempos históricos no sul da França, mas que n'aquella região se tem achado asso- biado ao mamouth, tanto no diluvium como nos lodos das caver-

0 apparecimento de louças era quanto bastava para não se poder afíirmar que a brecha fosse paleolithica.

' Entre outros, o Ursas spelceus e a Hyena spelcea.

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nas, parecia vir mostrar á luz da critica mais concludente, que a espécie humana tinha sida coeva dos grandes mammiferos da fauna anterior, extinctos nos primeiros tempos do período post- plioceno, quando até então ninguém havia referido a existência do hommo sapiens de Linneu a uma tão remota origem!

Não eram porém isolados estes factos, porque ao mesmo tempo que Tournal e Mareei de Serres os reconheciam na ca- verna de Bize, outro sábio, M. de Christol, então secretario da sociedade de historia natural de Montpellier, apresentava em ju- nho de 1829 ao instituto de França, uma memoria sob o titulo de Notice sur les ossements humains des cavernes du Gard. M. de Christol apparecêra por seu lado confirmando as conclusões de M. Tournal, referindo ter encontrado na caverna de Pondres, perto de Nimes, ossos humanos, os de uma hyena e de um rhi- noceros de espécies extinctas, nas mesmas condições geológicas, porque a caverna esta™ totalmente oceupada pelos depósitos do diluviam até o tecto, havendo também fragmentos de louça numa camada inferior á dos ossos dos mammiferos. No mesmo departa- mento, explorando M. de Christol a caverna de Souvignargues, achou na mais profunda camada do diluvium ossos humanos compridos de um individuo adulto, associados a um sacrum e a duas vértebras.

Na Bélgica, em 1831, era explorada pelo celebre dr. Schmerling a caverna d'Engihoul na margem direita do Meuse, fronteira á d'Engis l, na margem opposta, descobrindo o famoso explorador numa e n'outra, sob as mesmas condições geológicas e chimicas, craneos e outros ossos humanos, associados aos de grandes mammiferos extinctos, pertencentes á fauna antedilu-

1 Quem sabe o que representou perante o mundo scientifíco a celebre caverna d'En- gis, situada no calcareo carbonífero da margem esquerda do Meuse e distante uns 3 kilometros a sudoeste de Liège, não pôde deixar de lamentar a sua destruição. Quando o illustre Lyell a procurou em 1860. o calcareo da sua formação tinha sido arrancado a pedaços para material de construcções e fornos de cal! Foi o que suecedeu ás pyra- mides prehistoricas que descobri Serro da Pedra Branca e no Monte de Roma, perto de Silves, aos menhirs da cumeada de S. Bartholomeu de Messines, o que está suece- dendo ás ruínas de Ossonoba e a todos os mais descobrimentos que tenho feito n'esta província.

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viana, como o demonstra o auctorisado paleontologista e anato- mista na sua memorável obra cm dois volumes e um atlas, pu- blicada em 1846, sob o titulo de Recherches sur ks ossements fossiks découverts dam ks cavernes de la province de Liège, onde são descriptas mais de quarenta cavernas, pela maior parte si- tuadas nos valles do Meuse e dos seus afíluentes.

Não obstante os reparos e opposições que logo se manifesta- ram, poucos annos depois os próprios arguentes, em obediência á lealdade do seu elevado caracter, como aconteceu aos sábios Denoyeres e Lyell, vieram confirmar a contemporaneidade da vida humana com vários mammiferos do mundo antigo, uns ex- tinctos, como eram o urso e a hyena das cavernas, e um, o ran- gifer, emigrado e vivente nas regiões hyperboreas.

A todos, porém, foi escapando a significação das louças as- sociadas áquelle conjuncto de critérios verdadeiramente geológi- cos, porque ainda então não se sabia que a cerâmica era uma das mais typicas manifestações dos tempos neolithicos, e que, por isso, encontrada num tal deposito, somente serviria de prova contraproducente, quando não se podesse demonstrar que a ca- verna havia sido oceupada em epochas diversas, estando as lou- ças numa camada superior inteiramente separada do deposito inferior e sem indícios de ter sido revolvido e misturado ; por- quanto, tendo-se formado uma brecha que envolveu fragmentos de louças, devera com preferencia julgar-se que os ossos huma- nos não tinham alli a minima authenticidade de epocha.

Em Inglaterra, perante a tão cautelosa reserva com que se presenciavam os descobrimentos feitos na França e na Bélgica, reserva originada na auetoridade que nos espíritos ficaram exer- cendo as affirmações cio rev.d0 dr. W. Buckland, embora pouco posteriormente apparecessem no Devonshire provas ainda mais concludentes, não permittia a incredulidade ingleza uma inter- pretação que alterasse as prescripções estabelecidas na obra de Buckland. O próprio rev.(1° J. Mac. Enery, padre catholico, que pouco depois dos descobrimentos de Schmerling explorara no sul de Inglaterra a caverna de Kent's Hole, uns 2 kilometros dis-

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tante de Torquay, não se atreveu a preparar a celebre memoria, que deixou inédita, sob o titulo de Cavem Researches, by the rev. J. Mac. Enery, senão associando-se a Buckland, certamente convencido este geólogo das erradas proposições que havia firmado nas suas relíquias diluvianas, e por isso ficou o manu- scripto fora da acção da critica, retardando o progressos da scien- cia até 1859 (!), em que M. Vivian o lançou á luz da publicidade. Foi então que o mundo scientifico veiu a saber que a caverna de Kent's Hole encerrava os instrumentos de silex mais typicos da primeira idade das cavernas, similhantes aos de Moustier em França, associados ao Felis spelcea, Hyena spelcea, Ros primige- nius, Rhinoceros tichorinus, Hippopotamus major, Lagomys spelcea, todos da fauna quaternária, apparecendo também no mesmo de- posito vermelho, inferior ao solo stalagmitico, com todo este cor- tejo insuspeito mais três dentes caninos de uma espécie pliocena, o Felis machairodus, o maior d'este género, os quaes todavia po- diam alli ter sido introduzidos pelos troglodytas do período pa- leolithico, como occorreu a Lyell.

Esta publicação, que bem podéra ter-se feito muito antes da obra de Schmerling, não chegou porém a correr mundo senão dezesete annos depois de M. Godwin-Austen, subsequente explo- rador da celebre caverna de Kent's Hole, publicar em 1842 nas Transactions of the Geological Societtj1, a sua importante Memoir of the Geology of South Devon, mostrando ter descoberto nos se- dimentos de lodo argilloso ainda intactos, inferiores á cota do solo stalagmitico, instrumentos lascados de silex misturados com restos de mammiferos da fauna extincta; o que provava serem synchronicos estes critérios e coexistentes n'aquelle deposito in- ferior da caverna antes da formação do manto concrecionado.

Foi por assim dizer esta obra do insigne geólogo inglez M. Godwin-Austen que começou a dispor os espíritos, ainda du- vidosos, para a reacção que se foi lentamente preparando até que, descobrindo-se em 1858 uma caverna ossifera intacta em

Vol. vi, p. 444, 2.a serie.

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Brixham, 6 kilometros ao sul de Torquay, se desenvolveu o em- penho de que fosse explorada em devida regra.

Tantas provas manifestas deviam certamente vencer as hesitações, as duvidas e incredulidades que a circumspecção aconselhava aos homens mais escrupulosos e prudentes em as- sumptos de tanta gravidade, e d'este modo a real sociedade de Londres, despertando aos clamores do dr. Falconer, nomeou uma commissão composta dos mais eminentes geólogos inglezes, a quem incumbiu os trabalhos da exploração, e auctorisou as re- spectivas despezas, para as quaes appareceu uma dama, miss Burdett Coutts, contribuindo generosamente, como refere sir Char- les Lyell.

As operações da exploração foram dirigidas porM. Pengelly, a planta levantada pelo professor Ramsay, os critérios fosseis, subordinados ás condições geológicas do seu jazimento, classifi- cados e catalogados por MM. Falconer e Prestwich, e a classifi- cação da fauna incumbida a M. G. Busk. O próprio Lyell, visi- tando os trabalhos e examinando as collecções, tudo descreve com a lucidez própria da sua superior sabedoria. A consubstan- ciação dos resultados obtidos reduz-se a estes termos:

Na camada superior, formada de uma crusta stalagmitica, da espessura de 2 a 35 centímetros, achou-se incrustada uma armação de renna e um humerus de urso das cavernas. Ora, a renna, Cervus tarandus, como é sabido, caracterisa uma espécie vivente, mas emigrada em tempos prehistoricos para as regiões do norte.

Na camada ossifera de lodo e calhaus, abaixo do solo con- crecionado, da espessura de 60 centímetros a 4 metros, as es- pécies extinctas mais typicas, classificadas por Busk, foram o Elephas primigenias (mamouth), o Rhinoceros tichorinus, o Ursus spelceus, a Hyena spelwa, o Felis spelcea, (chamado leão das ca- vernas) e o Cervus tarandus (renna). Disseminados n'esta camada, mas em maior copia no seu plano mais baixo, comquanto em parte alguma se manifestassem ossos humanos, appareceram nu- merosos instrumentos cortantes de silex, representando a indus-

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tria dos homens que frequentaram aquellas cavernas em tempos quaternários, correspondentes geologicamente ao período paleoli- thico, muito antes da formação do solo stalagmitico e da própria brecha ossifera composta pelo deposito sedimentar inferior.

Por esta forma, as theorias e proposições de Buckland, pro- clamadas em 1823, sobre os factos até então conhecidos em rela- ção ás origens da humanidade, ficaram prescriptas perante a scien- cia e desmentidas pelas cavernas de Kent's Hole e de Brixham, que evidentemente vieram demonstrar a existência humana em tempos prehistoricos geológicos, correspondentes a uma fauna pela maior parte extincta, ou emigrada para uma região glacial, mostrando este facto que o homem foi testemunha presencial das grandes convulsões que parcialmente transformaram a crusta e o relevo orographico do planeta em que habitamos, da deslocação que soffreu o antigo continente europeu de todo o território que ficou formando o archipelago britannico, bem como da mudança das condições climatéricas, que extinguiram n'esse retalho de terra insulada as espécies que ficaram sem passagem para a emi- gração que conseguiram fazer as do continente, abandonando as zonas geographicas em que tinham vivido, para poderem viver, ainda actualmente, n'outras mais septentrionaes, cujo clima pa- rece dever denunciar qual seria o da Europa central ou da França meridional antes da retirada do Cervus tarandus e de outras es- pécies de herbívoros de géneros diversos.

E como se poderia explicar a apparição do homem, ou dos productos da sua industria, em condições de synchronismo de período geológico com os grandes mammiferos extinctos perten- centes á fauna post-pliocena, em Inglaterra, sem primeiramente se admittir uma passagem, que levasse esses mammiferos do actual continente para o actual archipelago britannico?

Apesar de todas estas comprovações, pode affirmar-se, porém, que quando o estudo synthetico das cavernas assumiu um des- envolvimento quasi geral na Europa, foi desde que o insigne Lartet começou a publicar as suas famosas monographias con- cernentes ás cavernas do Périgord e d'Aurignac, e quando os

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trabalhos de Schmerling foram proseguidos na Bélgica por M. Dupont.

Muitos e grandes trabalhos relativamente ás cavernas de va- rias regiões da Europa correm impressos. Não seria difficil traçar o quadro chronologico d'esses famosos estudos e referir a successão dos descobrimentos effeituados até esta data. Não é esse, porém, o meu propósito, mas simplesmente, com as noticias que ficam expendidas, mostrar a conveniência, que sempre julguei haver, em que o exame das antiguidades do Algarve, como pro- puz, começasse pelas cavernas.

E seria porventura destituído de fundadas esperanças num êxito sobremaneira mui provável, o estudo scientifico das caver- nas do Algarve em presença das noticias que tinham dado alguns sábios hispanhoes relativamente a varias cavernas do seu litoral marítimo do sul?

Quando se olha para uma carta geographica da península hispânica e ao mesmo tempo se tem tomado nota das cavernas ossiferas, citadas pelo sábio D. Manuel de Góngora no seu inte- ressante livro das Àntiguedades históricas de Andalacia, occorre logo a qualquer espirito observador e critico a circumstancia de se terem achado nas províncias de Granada e Algeciras, a curta distancia da orla marítima do Mediterrâneo, muitas cavernas com abundantes ossos humanos e múmias admiravelmente bem con- servadas, revestidas dos mais typicos característicos industriaes da epocha que representam; occorrem ao mesmo tempo as cele- bres cavernas do Monte Calpe (Gibraltar), e que todos esses de- pósitos mortuários de diversos períodos prehistoricos defrontam com a região septentrional da Africa, banhada pelas aguas daquelle mesmo mar que banha as praias granadinas até ás Co- lumnas de Hercules.

Faltam, porém, estudos fundamentaes no reino vizinho sobre certas especialidades, ou, se taes estudos existem, são por mim totalmente desconhecidos, e por isso, sobre todos, dois assumptos principaes, a ethnologia e a ethnographia do sul da península, não podem por emquanto permittir as deducções de que carece

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a prehistoria (Festa extrema região. Não se examinou anthropo- logicamente que raça representavam os craneos da caverna dos morcegos e da de Albunol, tendo-se descoberto na primeira mais de sessenta múmias admiravelmente bem conservadas, vestidas e adornadas como haviam entrado naquella mysteriosa mansão consagrada ao abrigo dos mortos.

Além de um diadema de ouro. que cingia a fronte de uma daquellas múmias, nenhum outro metal se achou; appareceram, porém, facas de silex, instrumentos de pedra polida e ossos tra- balhados, dando áquelle conjuncto uma como feição neolithica. As louças, porém, embora alguns exemplares fossem de forma e fabricação rudimentar, apresentando na sua maioria uns certos ornamentos e appendices, não tão antigas, poderiam considerar-se talvez sendo tanto mais consócias de finos e mui engenhosos te- cidos de esparto, os quaes vieram sobretudo denunciar os troglo- dytas d'aquellas cavernas, mui peritos na industria da tece- lagem.

Não se compararam, emfim, os ossos das Cuevas de los Mur- cièlagos e de Albufwl com os das cavernas do Galpe, e ficaram por examinar as cavernas da região comprehendida entre o monte Galpe e o cabo de S. Vicente, isto é, de todo o litoral do sul da península, banhado pelo Atlântico; o que não teria succedido se o estudo das cavernas do Algarve se tivesse effeituado ; porque, embora não podesse absolutamente afiançar a existência de ca- vernas ossiferas n'esta região geographica, não poucas probabi- lidades havia neste sentido, por isso que acerca de algumas cor- ria noticia de conterem thesouros e pedras preciosas, de se terem achado n'outras muitos pedaços de louças grosseiras, de serem apontadas muitas como utilisadas pelos mouros para sua habita- ção e refugio em tempos de guerra, e finalmente por se dar o facto, assas singular e talvez altamente significativo, de serem mui frequentes nas proximidades das cavernas indicadas na carta prehistorica vários instrumentos de pedra e também alguns de bronze.

Não era de esperar que todas as cavernas marcadas na carta

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e muitas outras (talvez dez vezes mais), que ficaram sem indica- ção, contivessem ossos humanos, ou productos industriaes asso- ciados a critérios paleontologicos e cm condições geológicas, que permittissem o reconhecimento e a classificação do período ou epocha do seu deposito.

Exploradas todas, julgar-me-ía mui bem galardoado, achando simplesmente em taes circumstancias umas duas ou três. Foi o que succedeu ao celebre Lund, que, tendo explorado no Brazil mais de oitocentas, apenas em seis achou ossos humanos, do mesmo modo que três ou quatro cavernas ossiferas descobriu na Bélgica o dr. Schmerling, tendo explorado quarenta e oito *.

Fica pois em aberto na prehistoria do Algarve esta lamen- tosa lacuna, que impede talvez desde uma serie de importan- tes conclusões; mas não poderá agora, nem em tempo algum ser lançada á conta da minha ignorância, porque empenhei todo o meu esforço para que o estudo das antiguidades d'esta provín- cia começasse pela exploração das cavernas.

Em Portugal pouco relativamente se tem feito, comquanto sejam dignos de grandíssimo louvor os trabalhos do sr. Joaquim Filippe Nery Delgado nas grutas de Cesareda e os que foram mandados fazer em varias cavernas por Carlos Ribeiro, a quem este paiz e a sciencia ficaram devendo serviços do mais transcen- dente valor, para que o seu nome em todos os tempos futuros mereça gratíssima recordação, e a sua perda, n'uma conjunctura em que muito se devera esperar de seu génio tão laborioso, seja justamente sentida e por emquanto irreparável.

São excellentes, abundantes de revelações importantíssimas, e altamente valiosos os trabalhos, concernentes a grutas e caver- nas, do sr. Nery Delgado e de Carlos Ribeiro; mas esses traba- lhos são essencialmente monographicos, e comquanto forneçam elementos de grande alcance, consignem asserções e conceitos de utilíssimo aproveitamento, não podem pela sua índole, espe- cialmente local, manifestar a feição geológica, paleontologica e

Dr. Joly, pag. 50. 4

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archeologica que a sciencia reclama e exige ao território (Testa nação.

Marcadas na carta geographica do reino as grutas e cavernas exploradas e estudadas pelos mencionados geólogos, perceber- se-ha immediatamente que esse limitado numero de pontos iso- lados representa apenas a gloriosa inauguração de um novo es- tudo em Portugal, coroada do mais feliz êxito e merecidamente estimada, sem que comtudo permitia ainda as conclusões, que somente poderiam deduzir-se de um estudo geral, rigorosamente geographico e systematico em todo o território nacional.

Falta o nexo ethnographico para ligar esses pontos estudados com as numerosissimas cavernas não estudadas que occupam uma grandiosa parcella do nosso chão continental ; falta o conhe- cimento geral das faunas que se deixaram representadas nesses obscuros receptáculos ; falta o conhecimento das raças humanas que povoaram ou frequentaram esses recônditos abrigos; faltam as manifestações directas dos typicos productos da industria de cada uma d'essas raças; falta o conhecimento dos pontos que ligaram as estações troglodyticas d'este solo com os dos territó- rios adjacentes, ignorando-se portanto o trajecto da marcha, se a houve, que seguiram em cada periodo os povos que habitaram as cavernas; e admittindo-se que a península não tivesse tido aptidões de geração biológica propriamente suas, e se po- voasse com gente de estranhas plagas, falta o reconhecimento do hypothetico ponto de partida d'essa gente ao entrar n'este terri- tório e o da sua ultima estação, assim como de não estar ainda feito este apuramento, a que se devera chegar, falta também uma serie de outras importantes noticias para, á luz da critica dos factos, se poder interpretar e reconstruir cada uma d 'essas re- motíssimas civilisações e escrever-se a sua historia, começando-se pelos primeiros assomos da existência humana n'esta derradeira faxa occidental da terra.

Assim como a geologia, no estado de progresso a que hoje tem chegado, pode afoutamente determinar as evoluções cósmicas e os cataclysmos por que passou esta parte do continente euro-

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peu, enumerando as phases de sublevação e de abaixamento até á fixação do aclual relevo orographico pelo simples exame das suas rochas sedimentares, plutonicas e metamorphicas, pela com- posição mineralógica e direcção que ficaram tendo as montanhas e os valles, incluindo o curso dos rios e ribeiras, do mesmo modo a paleontologia poderia determinar as faunas que povoaram este solo, pela maior parte primitivamente inundado; a anthro- pologia ou paleontologia humana poderia apontar as raças que viveram nesta região, e foram ainda testemunhas impassíveis das grandes perturbações que parcialmente modificaram o relevo e configuração da crusta terrestre após o período post-plioceno, por isso que, a admittirem-se como comprovações indirectas da existência humana os productos da sua industria, encontrados por Carlos Ribeiro nos valles do Tejo e do Sado, neste terri- tório havia homens l na epocha terciária, como também os havia n'outras regiões do globo; e finalmente a archeologia prehistorica chegaria a inventariar chronologicamente, permitta-se-me a im- propriedade do termo, as provas da industria dos homens, as phases de desenvolvimento e perfeição relativa por que foram pas- sando de umas para outras civilisações, incluindo o modo de viver e de sentir de cada uma, deduzindo-se d'essas mesmas provas e das condições dos seus jazigos.

Está tudo isto por fazer e por saber, porque faltam estudos fundamentaes, que podem ser emprehendidos, mediante um plano rigorosamente systematico, por uma sociedade scientifica expressamente organisada para este fim especial, que as exi- stentes no nosso paiz parecem ter-se totalmente esquecido da sua própria indole e da obrigação social, que se arrogaram, de levarem a cultura e o progresso das sciencias até o seu máximo desen- volvimento!

Era ás academias e sociedades altamente scientificas do reino

' O sr. de Martillet diz que o que havia então, não era ainda o homem, propriamente dito, mas o seu precursor, e para não o deixar sem nome, chama-lhe anthropopilhecus, entidade que o meu curto entendimento não precisa conceber para admittir a existência do homem desde as suas mais remotadas origens.

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que competia à iniciativa, o primeiro brado, o primeiro esforço neste sentido, para assim se desempenharem da responsabilidade que contrahiram com o paiz, com a sua própria dignidade e com o futuro, cumprindo aos governos sábios, illustrados e patrióticos, o concurso dos seus mais efficazes e poderosos auxílios, como se tem feito na França, na Bélgica, na Allemanha, na Inglaterra, e mesmo noutras nações de menor vulto, mas que prezam a scien- cia e o pundonor nacional.

Nada d'isto se tinha emprehendido até 1877, quando a voz publica convidou o governo a mandar estudar umas antiguidades que fortuitamente haviam ficado á vista na margem direita do rio Guadiana e em vários pontos do Algarve.

Fui eu incumbido d'este estudo, sem que para isso me fizesse lembrado, e pedi logo três mezes de espera para organisar o plano geral dos trabalhos que havia elaborado.

Entendi então, como entendo hoje, que em Portugal, embora houvesse vários especialistas em diversos ramos da archeologia monumental, nenhum tinha ainda manifestado o minimo plano para levar o paiz a confraternisar com as nações que maiores provas estavam dando do seu progresso n'esta sciencia.

Apenas tinha apparecido um geólogo audacioso, mas convi- cto da significação dos seus descobrimentos, que, atravessando a Europa, fora proclamar num congresso de sábios a comprovação do homem terciário no território portuguez, e era Carlos Ribeiro o athleta que se atrevera a affrontar essa lucta, ainda hoje não vencida, mas altamente gloriosa, como a seu tempo se reconhe- cerá.

Em archeologia histórica tinha apparecido Emilio Húbner, um dos mais abalisados epigraphistas da Allemanha e professor da universidade de Berlim, colligindo e publicando a riqueza epi- graphica que ainda existia em Portugal, depurando-a das incor recções com que o visconde de Paiva Manso havia compilado e publicado as nossas inscripções romanas.

O sábio dr. Pereira da Costa publicava pouco depois as suas preciosas memorias acerca dos Icjoekkenmoeddings de Cabeço de

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Arruda c das antas de Portugal. Nery Delgado abria o caminho para o estudo das cavernas, publicando a sua famosa memoria acerca das grutas de Cesareda, seguindo logo Carlos Ribeiro com o estudo de outras cavernas.

Começava pois a haver um certo movimento, uma certa exci- tação no animo d'esses beneméritos da sciencia, a quem este paiz sem duvida alguma deve relevantíssimos serviços ; mas plano geral para o estudo das antiguidades do reino, tanto prehistori- cas como históricas, não tinha apparecido, como disse, até 1877.

Estando pois encarregado officialmente do estudo geral das antiguidades do Algarve para poder represental-as na carta ar- cheologica, que tinha começado a esboçar em outubro de 1865, entendi ser aquella a occasião de poder lançar as bases definiti- vas para o reconhecimento methodico das antiguidades do reino.

A carta archeologica do Algarve devia portanto symbolisar todas as antiguidades que se podessem verificar n'esta província, sendo a sua representação subordinada a uma ordem regular e methodica, por isso que tinham de ser descriptas, segundo essa ordem indispensável.

Procurar onde deveriam achar -se as mais antigas manifesta- ções de occupação territorial e seguir pelas subsequentes até, pelo menos, á data da conquista portugueza, seria o plano mais completo de averiguação, e conseguidos estes resultados, ficaria estabelecido o systema para o estudo e representação das anti- guidades geraes.

Foi o que pretendi levar a eífeito.

Comecei por indagar se nos estudos geológicos feitos no Al- garve se tinham encontrado provas directas ou indirectas das ci- vilisações que em tempos remotos senhorearam este território, e não tendo ficado noticia alguma a este respeito, concebi logo o pensamento de procurar essas provas geológica e archeologica- mente no âmago das cavernas naturaes d'esta região. Formulei n'este sentido a minha proposta; propuz que fossem primeiro que tudo exploradas as cavernas; mas o governo, temendo a demora e os dispêndios que poderiam custar aqui trabalhos idênticos aos

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que liuham sido feitos na Bélgica por Schmerling e Dupont, re- jeitou-a, limitando o seu encargo ao exame das antiguidades in- dicadas no solo por vestígios apparentes.

O exame das antiguidades do Algarve soffreu assim um pro- fundo corte fundamental.

Cumpri portanto as ordens do governo, não explorando as cavernas, mas tomei nota dos pontos em que existiam as princi- paes para simplesmente as indicar a futuros exploradores. E uma lacuna que fica em aberto, sem que nunca possa ser-me apon- tada como censura.

Ha muitas mais cavernas, muitíssimas, que não me seria difficil descobrir e indicar, se podesse fazer d'este assumpto um exame especial sem a intervenção do governo, a quem nunca mais acceitarei commissão alguma de serviço publico subordinada aos prasos, de todo o ponto viciosos e absurdos, com que um chefe de repartição calcula o tempo material que deve levar uma qualquer exploração scientifica, parecendo não formar a minima idéa d'este género de trabalhos!

Advertirei finalmente, que estes estudos não soffrem as re- stricções ineptas dos prasos, que podem todavia ser muito úteis para certas empreitadas de trabalhos de artes e officios, mas que são incompatíveis com aquelles que nenhum fundamento mini- stram ao calculo da zelosa burocracia. Melhor será, pois, quando o governo queira mostrar-se altamente interessado pelo estudo dos monumentos nacionaes, determinar uma verba annual para se dispender com esse estudo, e mandal-a competentemente fisca- lisar, porque d'este modo se conseguirá o resultado, fazendo-se os trabalhos em devida regra. Extincta a verba, o explorador deixa o campo preparado para continuar no anno seguinte, se tanto for preciso, e recolhe-se para estudar e descrever o fructo dos seus descobrimentos. Pode ser que este alvitre manifeste al- guns inconvenientes ; mas, pelo menos, é racional e tolerável.

Eis-aqui a distribuição geographica das poucas cavernas de que tomei nota e indiquei na carta prehislorica.

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Ooncelho <ie .AJjezixr

Caverna da Sinceira, ao norte do castello e a nor-noroeste da igreja. 4\ 500

Foi descoberta em março de 1883, por um caçador, sendo- me communicado o seu descobrimento pelo sr. José da Gosta Serrão em carta de 5 de abril, o qual, com muita gente do povo a foi logo visitar. Diz o sr. Serrão que esta caverna é immensa, dividida em corredores e casas de 20 e mais metros quadrados sobre 2 a 3 metros de altura; que na occasião do descobrimento muita gente se preparara com luzes e alli entrou em grupos, to- mando diversas direcções, e que cinco minutos depois ninguém se via, mas simplesmente o clarão da luz, que diminuía ao passo que os caminhantes se desviavam da entrada aberta pelo caçador em occasião de se lhe ter escondido numa fenda da rocha um coelho que perseguira.

O sr. Serrão refere ter com dois companheiros avançado na direcção proximamente do norte uns 200 metros, ora sobre um ca- minho liso e bom, ora entre grandes penedos, até chegar a um grande salão de lindíssimo aspecto, de cujo tecto pendiam nume- rosas e robustas stalactites, em que a luz das lanternas se refle- ctia com phantastico brilho, e que junto d'este logar havia muitos mosquitos, ouvira correr agua com grande estrondo, e que re- ceiando lhe faltasse a luz, foi pelos seus companheiros obrigado a deixar de proseguir. Refere finalmente ter encontrado um grande dente de forma triangular, com fina serrilha nos bordos lateraes, idêntico aos que foram achados no deposito neolithico junto á igreja da Senhora da Alva, em Aljezur, os quaes pertencem a um squaloide do género Carcharodon, não constando que taes dentes se tenham achado n'outro sitio d'aquella região.

A menos de 1 légua de distancia fica pois a mansão mor- tuária em que foram achados com os instrumentos de pedra os referidos dentes de Carcharodon, dentes que por alli nunca foram vistos senão na caverna da Sinceira. Esta circumstancia deixaria com algum fundamento presumir, que os constructores do depo-

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sito mortuário, descoberto a 14 metros ao norte da porta lateral da matriz de Aljezur, mui provavelmente frequentariam aquella ou alguma das outras cavernas existentes entre Aljezur e Ode- seixe, e que d'esses sombrios edifícios da natureza trouxessem aquelles dentes, a que ligassem qualquer significação mysteriosa ou a que dessem applicação nalgum trabalho a que se prestasse a rijeza da substancia, a sua configuração cuneiforme e as suas arestas acuminadas e denteadas ao mesmo tempo, podendo ainda presumir-se que a denticulação ou serrilha dos referidos dentes inspirasse aos troglodytas d'aquella paragem a útil idéa de trans- mitirem ás suas facas de silex a mesma feição, por isso que muitas das que foram achadas no deposito mortuário manifesta- ram este característico, havendo uma entre todas em que o re- corte denteado, fino e regular nos dois gumes oppostos, é tão perfeito como o dos dentes d'aquelle extincto vivente da fauna antiga. E não se pode duvidar de que os referidos dentes fosseis fossem utilisados, porque num monumento de Nora também tinham apparecido dois entre os instrumentos de pedra com des- gastamentos nas arestas denteadas.

Sabendo-se pois, que a região de Aljezur abunda em cavernas, e provada alli a existência de uma estação mortuária, capitula- damente pertencente á ultima idade da pedra, mas em que os seus critérios são largamente representados por farpas de frecha, facas e serras de silex, que melhor presumpção poderia conce- ber-se de que outra vivenda ou abrigo não teriam os homens que estanciaram n'aquelle ponto, para assim se poderem julgar essencialmente troglodytas? Em que paiz civilisado, ou pelo me- nos com assomos de se julgar na senda do progresso scientifico, deixariam os governos e as academias de mandar proceder á exploração e estudo de taes cavernas?

Ainda que não fosse pela dedicação devida á sciencia, mas simplesmente para se lisongear o espirito publico, e mostrar ás nações estrangeiras, que a palavra progresso, a todo o passo in- vocada em Portugal, não significa uma burla, valia bem a pena sangrar ainda um daquelles prasos fataes, que ao explorador de

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tantos descobrimentos effeituados foram impostos com dias contados, mas sem aquella clausula pouco racional e nada humana de perder o que tivesse adquirido, se ultrapassasse as raias des- ses prasos, calculados sem fundamento possivel pelos dictames de uma secretaria de estado ! Mas não serei eu quem de novo proponha a exploração das cavernas do Algarve. Para minha dc- feza perante os homens competentes, bastar-me-ha registrar aqui a recusa que obtive.

Gralheiras As grutas naturaes das Gralheiras estão si- tuadas a oeste do castello mourisco de Aljezur em distancia de lk,500, no plan'alto dos terciários marino e lacustre cm con- tacto com o carbonífero inferior, comprehendido entre a raia ma- rítima e o flanco esquerdo do rio, mui conhecidas pelo nome do sitio em que se acham.

Apresenta alli a rocha algumas cavidades, que a própria na- tureza produziu com caprichoso recorte, sendo possivel que em tempos remotos tivessem sido habitadas pelos homens, que a um quarto de légua métrica deixaram esparsos alguns instrumentos de pedra polida, entre os quaes cito um machado mui perfeito, que me foi offerecido em Lagos pelo illustrado dr. Augusto Feio Soares de Azevedo, e que represento sob o n.° 2 na estampa n da collecção dos instrumentos de pedra avulsos, existentes no museu archeolo- gico do Algarve. Poderiam pois aquellas grutas ter sido utilisadas em tempos remotos, quando as suas condições offerecessem asylo seguro e defeso contra o assalto de feras e de homens não menos perigosos, por isso que ainda fui encontral-as mais aprofundadas por dois irmãos chamados Manuel e Ignacio da Rosa, os quaes alli vivem e dormem durante o tempo em que cultivam os terre- nos adjacentes, merecendo por esta circumstancia o titulo de mo- dernos troglodytas.

Ha outras muitas cavernas na faxa litoral, tanto junto á praia como no plan'alto sobranceiro ao mar e ao rio, entre Odeseixe e a ponta da Arrifana, que não consta terem sido visitadas, e que eu mesmo não ousei procurar, porque os prasos fataes não me

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permittiam delongas para estudos não auctorisados e de incerto resultado, mas que muito recommendo aos futuros exploradores, quando um dia se começar a comprehender nas altas regiões do poder e da sabedoria nacional a importância de taes estudos, tão conhecida e aproveitada noutras nações, em que a confrater- nidade scientifica não se deixa dominar por antagonismos pes- soaes e políticos.

Ooncelho de Villa cio Bispo

Caverna da Barriga. Está esta caverna, a que dão o nome de furna, situada a nordeste e distante da ponta do Cabo de S. Vicente uns 5 kilometros. E accessivel a sua entrada tanto pela praia da costa occidental, como pelo lado da terra, e não pouco é frequentada por caçadores dos pombos bravos que n'ella se abrigam. Servindo-me dos apontamentos que devo ao meu obsequioso patrício e amigo o sr. coronel Francisco Corrêa Leotte, a caverna da Barriga passa por ser uma das mais vastas de todo o litoral marítimo. Referem homens antigos da Villa do Bispo, que um estrangeiro, visitando-a, e querendo medil-a, deixara amarrada á entrada a ponta de uma corda muito comprida e que segurando-se á outra ponta a desenrolou inteiramente sem conseguir chegar ao fim; o que não parece inverosímil, se com effeito é certo haver um manuscripto inédito do bispo Jeronymo Osório, como se diz, affirmando ter esta immensa caverna 1 lé- gua de extensão. O sr. Corrêa Leotte affirma não ter podido visi- tar toda a caverna, porque a curta distancia da entrada achou a passagem obstruída por um dilatado pego, produzido pela cor- rente das aguas.

Deve nolar-se a circumstancia de estar apenas 2 kilometros distante para nordeste o sitio do Catalão, onde se tem achado muitos machados de pedra polida em trabalhos ruraes. Um d'el- les foi alli mesmo por mim comprado a um camponez e é o que represento sob n.° 2, na estampa n. Fica também esta caverna distante pouco mais de 6 kilometros para oes-sudoeste da Villa do Bispo, onde se tem achado muitos machados de pedra, além

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dos que alli comprei a gente do povo para a minha collecção, um dos quaes vae figurado com o n.° i, na mesma estampa n. Logo a 1 kilometro para es-sueste da villa, está o sitio dos Sellanitos próximo á corrente da ribeira de Benaçoitão, em que igualmente comprei o machado de pedra n.° 4, da estampa n, e me informa- ram terem sido encontrados outros muitos. Dos Sellanitos pas- sando ao norte do Barranco das Hortas e atravessando a ribeira da Zorreta, outros machados de pedra me foram offerecidos por Joaquim Leal, achados em Budens, Areias e Curraes, que nesta ordem represento com os n.os 1, 2 e 3, na estampa m, assim como na estampa iv, sob n.° 1, mostro um instrumento de pedra polida, pontagudo numa extremidade, que comprei no Serro do Haver, quasi marginal ao rio de Almádena, mui similhante a ou- tros três da Torre dos Frades, que me offereceu António Marcel- lino Madeira.

Ora, quem tiver á vista a carta prehistorica, e observar a serie dos pontos designados entre a caverna da Barriga e o Serro do Haver, notará que toda esta secção topographica está assigna- lada ethnographicamenle por característicos attinentes a um povo que a senhoreou no período da ultima idade da pedra, ao qual seria difficil attribuir outro abrigo de habitação que não fossem as mais próximas cavernas, como podem ter sido, além das que ficam por apontar, as três seguintes, marcadas na carta, isto é, a dos Ouriçaes, a de Beliche Velho e a de João Vaz; e por isso bem comprehensivel é, quanto seria interessante e presumptiva- mente promettedora a exploração que se emprehendesse nesses recônditos edifícios da natureza.

Estas circumstancias de congruência, suggeridas á observa- ção e á hermenêutica, vão porém escapando-se pela tangente das conveniências materiaes e, a titulo de economia publica, sendo desprezadas por quem não entende o seu alcance ou não duvida sacrifical-o em troca de uma verba de despeza, que o simples bom senso reconheceria ser indispensável applicar-se em benefi- cio de um estudo que tem principalmente de ser baseado na cri- tica dos factos. Não se percam porém de vista as outras três ca-

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vernas, além das que omitto, que vão marcadas entre o cabo de S. Vicente e a enseada de Sagres, se alguma vez houver quem as saiba procurar e explorar.

Gruta dos Ouriçaes. Está situada junto á praia da Roi- çada, a que também chamam do Telheiro, 1 kilometro a no- roeste da ponta do cabo e outro ao sul do Leixão de S. Vicente, sobre a costa occidental. Não tenho noticias especiaes d'esta gruta. Diz-se ser assas espaçosa, frequentada por bandadas de pombos bravos, por lontras e rapozas, cujas pegadas, coprolithes, e ossadas alguns caçadores têem observado. Gomo não me foi permiltido o estudo das cavernas, deixei de visitar esta gruta ou furna dos Ouriçaes, quando fui investigar se ainda naquelle extremo retalho de terra firme haveria vestígio d'aquellas myste- riosas pedras Lapides multis in locis temos aut quaternos impo- sitos, a que se refere Strabão 4, e que não obstante o sentido em que o geographo grego as toma, são interpretadas como signifi- cando antigos dolmens pelo barão de Bonstetten,2 e se a minha rápida passagem pela região do cabo de S. Vicente não me per- mittiu atinar com vestígios de construcções megalithicas, de tu- muli ou galerias cobertas, como julgo deverem existir, achei com- tudo quem me vendesse um pequeno machado de pedra polida, que represento com o n.° 3, na estampa n, encontrado nas escar- pas da rocha próxima ao acastellado convento de S. Vicente, e me informasse de terem apparecido outros muitos n'aquellas para- gens; o que bem deixa entender que a população neolithica fre- quentou aquelles logares, onde de outras habitações, além das cavernas, não ha vestígios.

Não se me tome porém tanto a risca ou como prova de affir- mação este conceito, para se dar como averiguado ou como con- cludente o facto da habitação da gruta dos Ouriçaes, porque estão outras não indicadas na carta prehistorica, que poderiam ter sido preferidas. Citarei a seguinte.

' Lib. ih, 5.°

s Essai sur les dolmens, pag. 40— 1865.

Cl

Furna ou Caverna de Beliche Velho. Está situada na cosia marítima, comprehendida entre o cabo e a ponta de Sagres, e mais restrictamente entre a fortaleza de Beliche e a ponta de Sa- gres. Diz-se ser grandiosa, mas não encontrei quem me desse approximada idéa das suas dimensões, configuração, e das par- ticularidades apparentes que possam recommendal-a a um estudo especial, além da circumstancia de se achar numa zona de terra em que têem apparecido instrumentos de pedra e a que o teste- munho histórico de Strabão, bem como as tradições propagadas por Artemidoro, contemporâneo de Júlio César, attribuem uma remota habitação.

Furna de João Vaz. E esta a ultima furna ou caverna que vae marcada na carta prehistorica pertencente á região do cabo de S. Vicente, comquanto fiquem mais algumas sem indicação, o que poderá supprir-se, se se chegar a tratar do estudo espe- cial das cavernas. Está sobre o flanco esquerdo da enseada de- fendida pela fortaleza da Balieira (que também defende o flanco esquerdo da enseada de Sagres) e a margem direita da ribeira, ou antes pequeno rio de Benaçoitão. Parece ser uma das grandes cavernas da costa do sul. E larga a sua entrada e accessivel a um batel. A abobada do seu magestoso átrio é um tanto aba- tida. E mui visitada por caçadores de pombos bravos. Nada se sabe porém das suas ramificações e dos seus mysterios. Pertence comtudo a uma região, fechada por uma serie de pontos em que são frequentes os instrumentos de pedra polida, taes como o cabo de S. Vicente, Catalão, Villa do Bispo, Sellanitos, Budens e Areias.

Concelho cie Lagos

(Freguezia de Bensafrim)

Caverna da Saborosa. A 2 kilometros e a es-sueste da igreja de Bensafrim, no Serro da Cruz, sitio da Saborosa, e her- dade dos Mirandas, uma grandiosa caverna se manifesta com três entradas para outras tantas camarás, ficando a primeira ao

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poente, a da direita a suesle e a da esquerda a nordeste. Estão as ditas entradas obstruídas por pedras lançadas pelos maioraes para os gados não entrarem na caverna e poderem melhor esprei- tar a passagem dos coelhos. Refere o illustrado prior de Bensa- frim, António José Nunes da Gloria, ter observado de fora as três famosas camarás que dão entrada á caverna, parecendo-lhe estarem entre si communicadas e abrirem para o fundo e lados espaçosas galerias. A gente do povo crê que as galerias chegam a Silves! Refere o mesmo noticioso prior, que a uns 100 metros ao sul, e a mais de meia encosta do serro, se acha um grande covão ou fojo de 30 metros de diâmetro e de forma circular, que parece ser proveniente de um abatimento no solo ou antes da abobada de alguma das camarás da caverna. Não está por em- quanto sufficientemente observada; mas o facto de ser central a um grande numero de logares em que são frequentes os instru- mentos neolithicos, e de se terem achado no Monte Amarello, 4 kilometros ao norte de Bensafrim, indícios de construcções de pavimento circular, calçado de pedra miúda, com muitos macha- dos de pedra polida, crystaes de rocha e fragmentos de facas de silex, obriga a ligar a esta caverna o maior interesse e curiosi- dade na sua exploração, porventura mui esperançosa e profícua!

Ooncellio cie Portimão

(Freguezia da Mexilhoeira Grande)

Caverna bo Serro do Algarve. Está situada quasi no cabeço do serro d'este nome, a 3k,8 a nordeste da igreja da Mexilhoeira Grande e distante pouco mais de 2 kilometros da necropole de Alcalá. Logo á entrada acha-se o visitante sob um arco proximamente ogival e num átrio de forma quasi circular, coberto de abobada levantada em diversas ondulações, cujas paredes apresentam um compacto revestimento assas cu- rioso de aranhiços (Pholcus phalangioides, Walk.), que branda- mente se balanceiam em suas oscillantes teagens. Diziam alguns camponezes da Mexilhoeira Grande, que na parede, á esquerda

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de quem entra, se viam pintadas varias figuras representando os mouros que habitaram esta caverna. Não ha porém taes pintu- ras, mas uma combinação caprichosa da rocha jurássica com a infiltração estalactitica, produzindo veios, cores e formas de tal modo dispostas, que com effeito parecem, até certo ponto, deli- near vultos humanos.

se vê, pois, que a tradição local aponta a caverna do Serro do Algarve como tendo sido habitada pelos mouros, porque aos mouros refere o conceito popular quanto ha mais antigo. Da en- trada ao fundo do átrio mede-se a extensão de 6 metros e ahi se bifurca em duas passagens. A direita, na orientação sul e a 8 metros da entrada, ha uma cavidade á feição de poço, de fórma proximamente circular, obstruída por uma tão grande quantidade de pedra, segundo se diz, lançada alli pelos pastores serranos, que não permitte reconhecer-se se tem seguimento para alguma parte. A oes-sudoeste outra pequena abertura, também simi- lhante a gargalo de poço, está obstruída de pedras soltas, mos- trando porém um seguimento, cuja profundidade e direcção não é possível calcular, e pega com uma passagem ainda aberta, de pouca altura e pouco extensa, em cujo fundo as stalactites formam columnas com as stalagmites.

A caverna termina apparentemente bifurcando-se em dois ramaes, um apontando para nordeste e o outro para noroeste. No primeiro é visível uma grande fenda, actualmente intransitá- vel, mas que pode ter sido praticável antes do desenvolvimento que tem alli tido o solo stalagmitico assas espesso. O ramal que corre para noroeste seria porém transitavel, se não estivesse obstruído por grandes e numerosas pedras. A este ramal pertence uma pequena camará, em que se pode estar de sem constran- gimento, de cujo tecto pendem cardumes de stalactites em suc- cessiva formação.

O espaço em que se bifurcam os dois ramaes, assim como o plano do que segue no sentido de noroeste manifesta coprolithes antigos e recentes de um carnívoro do género Felis, o gato bravo vulgar, podendo também ser o lynce, ou gato cravo (Felis par-

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dina, dos naturalistas), que mui provavelmente poderá penetrar por algumas fendas em espaços mais largos e recônditos, agora defesos ao ingresso do visitante.

Não são alli visíveis certamente vestígios apparentes de an- tiga habitação humana em todo o espaço accessivel á observação, mas a circumstancia de haver escondrijos occupados pelo carní- voro, que frequenta a caverna, deixa presumir que ella tome á extensa collina do chamado Serro do Algarve muito maior espaço, embora actualmente desconhecido e vedado por abatimentos, ou por accumulação de pedras lançadas a entrada das suas galerias. A habitação antiga mui bem podéra igualmente existir sob o solo de formação stalagmitica em camadas até muito inferiores, como se tem verificado na Europa em varias cavernas, em que os ossos com os detritos carriados pelas torrentes formam camadas sedi- mentares brechiformes sob o manto concrecionado de uma for- mação estalagmitica posterior. Outra circumstancia emfim re- commenda esta caverna ao exame de futuros exploradores, e é ser a única que se conhece como central a uma infinidade de pontos em que são frequentes os instrumentos de pedra lascada e polida, e não haver vestígios de habitação prehistorica na área limitada por esses pontos, além de algumas cavernas artificiaes escavadas no solo.

Ooncellio de Lagoa

(Freguezia de Estombar)

Cavernas da Mexilhoeirinha. Sobre a margem esquerda do rio que corre de Silves para a foz de Portimão, entre Silves e a Mexilhoeirinha, ou Mexilhoeira da Carregação, muitas cavernas são indicadas pela gente do campo com a tradição vivamente ar- raigada na crença popular de terem sido a vivenda dos mouros, que occuparam uma das secções topographicas mais importantes do Al-Gharb mussulmano, atalaiada pelo castello de Alvor, cas- tello Lindo e castellos de Portimão, Silves e Estombar, podendo assim entender-se que a tradição confunde a epocha árabe com outras de mais remota antiguidade.

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Carlos Bonnet * refere-se a estas cavernas, parecendo com- tudo não tel-as visitado. Averiguou, porém, haver com effeito acima da Mexilhoeirinha montanhas calcareas com mui las c pro- fundas cavernas naturaes, estando algumas abertas para o rio, e repete a tradição de terem sido habitadas por mouros.

Uma visitei eu parcialmente, ate onde a claridade externa me permittiu o transito. Está situada a nordeste e a uns 500 metros da Mexilhoeirinha. Tem duas entradas contíguas á feição de arcos, espaçoso átrio, corredores e chão pouco ondeado. Re- parte-se em diversos ramaes, cuja extensão e orientação não me foi possível verificar. Notei, porém, estar obstruída uma das suas passagens por grandes amontoamentos de pedras soltas, mui pro- vavelmente despregadas da abobada. Algumas pessoas da popu- lação rural afiançaram-me que a caverna era extensíssima, acere- scentando logo outras, com o mais firme entono de convicção, que ia terminar no castello de Silves! Tal é a fertilidade da imagina- ção popular! O que para toda a gente do campo e mais especial- mente para as lavadeiras, que costumam recolher-se naquelle abrigo, passa por sabido e sem admissão a replica, é que os mou- ros viviam naquella e nas outras cavernas da margem do rio, e que quando o castello de Silves caiu em poder dos christãos (1189), alli se refugiaram e viveram ainda muitos annos. Um trabalhador idoso refere que. sendo ainda moço, com outros companheiros entrara muitas vezes naquella furna, mas que hoje não se pode ir tão longe como em seu tempo, em razão das muitas pedras que os pastores do gado toem amontoado nas embocaduras das passagens com o receio de que se perdessem algumas cabeças dos rebanhos em meio d'aquella assustadora escuridão, onde havia fojos ou abysmos profundos, que nunca ninguém observou. Accrescentava ainda o informador, que por aquelles corredores dentro havia casas lindíssimas com os tectos formados de bicos de uma pedra de agua muito branca, muita louça de barro escuro despedaçada e muitos morcegos, que chegavam a apagar as luzes

Memoria geológica do Algarve, 1850. o

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que se levavam, que eram umas lijelas com sebo derretido em azeite e uma torcida grossa de trapo no meio. Contava, final- mente, que um parente seu achara dentro, debaixo de um monte de conchas de marisco, umas cousas de cobre, que não sabia dizer o que eram, porque sobre tudo isso tinham passado muitos annos.

A parte, porém, a exageração com que os narradores rústicos geralmente engrandecem o que observam, parece comtudo haver nas maravilhas que referem um certo fundo de verdade, que pode guiar o explorador consciente a descobrimentos importantes para a sciencia, e por isso as cavernas da margem esquerda do rio de Silves, nas proximidades da Mexilhoeira da Carregação, ficam aqui recommendadas para quando alguma vez haja governos n'este paiz, que, comprehendendo o alto interesse que em todas as nações cultas está inspirando o estudo das cavernas, saibam dar por bem empregado o tempo e dispêndio que reclamam estes interessantes trabalhos, que tantas revelações hão ministrado com relação ás raças e ao grau de civilisação das mais remotas na- cionalidades, que viveram n'este ultimo retalho occidental da terra.

Furna da Zorra ou do Medronhal. Corre a formosa e mui pittoresca ribeira de Odelouca, navegável até á sua antiquíssima ponte, agora renovada e desfigurada, por entre duas verdejantes e alterosas collinas, denominando~se serra de Arge ou de Alge, a que lhe serve de flanco direito e serra da Atalaya, a que lhe forma a margem esquerda.

A foz d'esta ribeira pode marcar-se na extremidade sul do mui galhardo ilhéu do Rosário, apenas separado da serra da Ata- laya por uma estreita passagem, que mistura as aguas da ribeira com as do rio que corre de Silves para Portimão, formando o flanco oriental do ilhéu a foz do rio de Silves. Reservando-me para em seu competente logar descrever o ilhéu do Rosário com as suas antiguidades prehistoricas e históricas por mim desco- bertas em 1878, e com as tradições que o assignalam naquella

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encantadora paragem, tratarei aqui somente do assumpto a que me refiro.

Numerosas nascentes, manando da serra do Almirante ao oriente, correndo pelo escarpado recosto da serra da Mesquita, e mais caudalosamente partindo também da serra de Monchique, vão precipitar-se sobre o profundo valle de Odelouca e cortam na região alpestre mais elevada da serrania do Algarve o carbo- nífero inferior, a erupção foyaítica de Monchique, a faxa do trias na latitude de Silves, o jurássico superior, que chega no flanco direito até á margem esquerda da ribeira do Boina e no esquerdo até á extremidade que separa a serra da Atalaia do ilhéu do Rosário. Ora, é precisamente ao sul da faxa do trias, em plena região jurássica, e a montante do terciário marino que conslitue os flancos da foz do rio de Portimão, que estão situadas as ca- vernas da possante ribeira de Odelouca, tanto na serra da Ata- laia como na serra de Arge.

E preciso, porém, sabel-as procurar e reconhecer, porque as suas entradas não são sufficientemente definidas ou accessiveis actualmente. Citarei apenas a da Zorra ou do Medronhal, por ser a primeira que se acha na secção marginal comprehendida entre a margem direita da ribeira de Odelouca e a esquerda da ribeira do Boina, uns 500 metros distante da foz de Odelouca.

Chamam-lhe caverna ou furna da Zorra, porque, com effeito, os pellos e coprolithes do astuto mammifero d'este nome, denun- ciam a sua passagem e habitação no interior daquelle edifício da natureza, cujo âmbito é desconhecido, porque é accessivel ao visitante o seu apertado átrio. Não indico na carta prehistorica as outras cavernas das duas serras, separadas pela corrente da caudalosa ribeira de Odelouca, porque os prasos que me foram concedidos para o reconhecimento geral das antiguidades do Al- garve não podiam de forma alguma abranger mais esta especia- lidade, cujo exame seria certamente muito moroso.

Tendo-se porém á vista a referida carta, notar-se-ha que a secção topographica cortada pelas ribeiras de Enxerim, Odelouca e Boina abunda em critérios neolithicos, representando um povo

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que alli estanciava na ultima idade da pedra, e que embora ou- tras habitações terrestres po desse ler tido, mui provavelmente não desprezaria aquelles abrigos, que a natureza ministrou ás limitadas necessidades da infância humana.

No mesmo caso estavam os que por tão diversos pontos dei- xaram prova da sua existência na secção comprehendida entre a margem esquerda do rio de Lagos e a direita do de Portimão, abrangendo as ribeiras de Odiáxere, de Arão, do Farello e do Verde; pois é mui provável que a caverna do Serro do Algarve, próxima á margem direita da ribeira do Boina, não seja a única, por isso que na serie mesozóica das rochas sedimentares d'aquella região é todo jurássico o terreno adjacente á ribeira do Boina, entre a faxa do trias ao norte e o terciário marino ao sul, sendo portanto mui provável que esse retalho do jurássico superior con- tenha algumas cavernas, embora não conhecidas actualmente. Sem uma exploração exclusivamente destinada ás cavernas nada se pode porém afíirmar.

Concelho de Lagoa

Furna da Senhora da Rocha. Todo o viajante habituado a sulcar as aguas da costa do sul de Portugal conhece a ponta do Carvoeiro ou cabo Carvoeiro, formado por uma elevada rocha de cretáceo inferior, pertencente á serie mesozóica das rochas sedi- mentares, avançada para o mar, na latitude de 37° 7', e um tanto ao nascente, propinqua ao oceano, a ermida amuralhada da Senhora da Rocha, defendida por uma bem situada bateria. Entre esta ermida e a ponta do Carvoeiro está a muito antiga, forte e grande povoação de Porches Velho, outr'ora defendida por um castello, de que D. Affonso III, em 1252, fez doação ao seu chanceller D. Estevão Annes, mas que no dia do terremoto de 1755 ficou pela maior parte destruída, perdendo duzentas e trinta e oito casas de habitação. Entre a ponta do cabo e as minas do antigo castello, a nordeste junto á praia, está situada a chamada furna da Senhora da Rocha, assaz espaçosa, de forma quasi cir-

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cular, alumiada por um óculo, que sobre a sua entrada está aberto na abobada natural que a cobre. Póde-se alli entrar a enxuto, mas não se sabe hoje se cm antigos tempos se commu- nicava com algumas ramificações actualmente obstruídas.

Se esta furna ou caverna foi habitada em eras remotas, não se pode dizer, porque nenhum trabalho de investigação alli se tem feito neste sentido. É, porém, muito notável o grande numero de instrumentos de pedra polida, que consta tcr-se achado nas immediações da caverna e em toda a área do concelho de Lagoa, mostrando a frequência que teve aquella raia do litoral marítimo no período neolithico um povo que usava instrumentos de pedra polida, sem que se lhe possa attribuir outro abrigo de habitação mais próximo do que a mencionada caverna.

No museu do Algarve existem três machados de pedra: um, que comprei em Porches Velho; outro, no sitio de Grastos; e o terceiro, que eu mesmo achei isolado, indo a de Grastos para a Senhora da Rocha, os quaes vão figurados na estampa xvm, sob os n.os 2, 3 e 4, pertencentes á minha collecção.

Bastaria pois esta circumstancia para que a exploração d'aquella caverna se devesse emprehender.

Concelho e íreg^iezia de Albufeira

Furnas da Orada, grutas das Gralheiras e furnas da Praia. A villa de Albufeira está situada sobre rochas escarpadas e pro- pinquas ao mar, em que o terciário lacustre e o marino estão no contacto do jurássico superior, formando duas mui avançadas pontas, uma ao nascente, chamada o Porchel ou de S. João, e a outra ao poente, denominada a Balieira. Estas duas pontas limi- tam ao sul as extremidades de uma enseada de quasi nullo abrigo para a navegação, a que se tem dado o nome de bahia de Albu- feira, e cada ponta está ligada a uma praia assaz extensa, em que ha muitas furnas não exploradas, como é a da Senhora da Orada, como são as das Gralheiras e as da Praia.

Se essas furnas e grutas, que se diz serem assaz espaçosas,

foram' habitadas em tempos prchistoricos, não se pode saber sem que sejam devidamente estudadas. Sabe-se, porém, que não pou- cos instrumentos neolilhicos têem apparecido em terrenos mui próximos, o que, pelo menos, deixa presumir que taes abrigos não seriam desconhecidos dos homens que viveram e frequentaram aquella região na ultima idade da pedra. Alguns camponezes de Albufeira"possuem machados de pedra que não vendem nem ce- dem por forma alguma. A uma mulher idosa pretendi pagar muito bem dois 'que possuía, um a que ella dava o nome de raio, e o outro que distinguia d'aquelle pelo nome de centelha, e não quiz vender, sendo pobríssima, porque sempre tinha tido muito medo de raios. Tal é a crença que de longas eras ainda existe rediviva no conceito popular.

Na estampa xix, sob o n.° 1, represento um pequeno ma- chado de pedra polida, encontrado para os lados da Senhora da Orada, pertencente á collecção do sr. Joaquim José Júdice dos Santos.

Caverna do Sumidouro dos Lentiscaes. Está situada esta caverna numa como garganta do jurássico superior, apertada entre a isolada formação do terciário lacustre de Paderne, e uma ramificação da rocha triassica, que atravessa a região central d'esta província do poente para o nascente. A entrada que hoje se lhe conhece, assaz estreita e profunda, é circumdada de gros- sos penedos, e por ella se somem as aguas pluviaes do serro do Espargal e dos terrenos adjacentes. Dizem ser mui dilatada por extensas e complicadas ramificações, mas ninguém affirma ter alli penetrado. Julga-se, com algum fundamento, que varias nas- centes, arrebentando a grandes distancias, têem n'esta caverna o seu poderoso deposito. Outros dizem ouvir-se correr a agua no interior d'ella, produzindo estrondos, como se formasse quedas á feição de catadupas, e um susurro longiquo; mas que a aber- tura por onde recebe as aguas da chuva, não é a entrada antiga da caverna, com a qual não se acerta agora por estar abatida e desfigurada.

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Carlos Bonnet, na sua cilada memoria, refere-se somente á abertura por onde entram as aguas do Espargal e confirma a situação indicada, dizendo achar-se á direita do caminho de Alte para Paderne, passando-se a rocha Amarella. Ha finalmente a versão de que o sumidouro dos Lentiscaes, se communica com a vasta caverna da igrejinha dos Sôidos ou Soídos. E, porém, in- verosímil esta asserção; porquanto, a igrejinha dos Soidos está situada num retalho do jurássico superior, entalado entre a raia sul da faxa do Irias, que forma a cumiada de S. Bartholomeu de Messines até Salir, e uma larga ramificação que d'essa faxa corre para leste ainda além dos dois logarejos de Benafins com a ex- tensão de uns 4 kilometros, não sendo inferior a sua menor lar- gura a 1:500 metros. Por esta possante ramificação da rocha triassica estão pois geologicamente separadas e incommunicaveis as duas mencionadas cavernas.

Se com eííeito existiu outra entrada para a caverna do su- midouro dos Lentiscaes, é possível que n'ella houvesse uma parte habitável, de que se utilisassem os homens que se deixaram re- presentados nos campos de Paderne, na Fonte Santa, em Alie e Paniachos por instrumentos neolithicos, taes como os que vão figu- rados na estampa xix, sob os n.os 2, 3 e 4.

Concelho de Silves (Freguezia de Algoz)

Caverna de Algoz. A igreja de Algoz está situada em pleno terciário lacustre no contacto do jurássico superior, e é no Serro de Gueina, 1 kilometro ao noroeste da igreja, que Carlos Bonnet, na sua memoria geographica e geológica, publicada em 1850, pag. 40, noticia de uma grande caverna, que todavia não vi- sitou, mas de que teve informações.

Não vi eu também esta caverna, comquanto d'ella me dessem conhecimento quando entrei na aldeia de Algoz e fui examinar os campos adjacentes a oeste e a leste do Barranco Longo, e da ermida da Senhora do Pilar ao sul de Algoz, onde me informa-

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ram ser frequente o apparecimento de pedras de raio, e d'onde com effeilo conhecia um polidor de pedra, pertencente á col- lecção do sr. Joaquim José Júdice dos Santos, que represento na estampa xv, sob o n.° 3.

Em Algoz comprei eu um machado de pedra, que havia sido achado nas proximidades da ermida do Pilar, o qual pode ver-se na minha collecção depositada no museu do Algarve. Àcham-se portanto nas proximidades daquella caverna, que se diz ser das maiores do Algarve, isolados critérios do período neolithico, dei- xando assim presumir que não deixariam de aproveitar aquelle abrigo os homens que taes instrumentos alli deixaram.

Concelho de Loulé

(Freguezia de Alte)

Igrejinha dos Soídos. 0 ponto do Sobradinho, na vertente de sueste do Serro dos Soidos, n'uma elevação de 472 metros, que o navegante observa do mar entre o cabo Carvoeiro e a ponta da Balieira, distando de Alte ao noroeste uns 1:800 metros, in- dica a caverna da igrejinha dos Soidos, marcada na carta pre- historica. ficaram descriptas antecedentemente as condições geológicas d'esta caverna, acerca da qual deixou Carlos Bonnet as noticias, que vou referir, impressas em 1850 na sua Descri- ption géogràphique et géologique (Algarve).

Carlos Bonnet visitou esta caverna, julgando nella encontrar vestígios de habitação humana, e refere ter alli feito uma exeava- ção, mas que não achou ossos! se que sob o manto stala- gmitico é que concebeu a possibilidade de encontrar vestigios directos de habitação. Não diz, porém, as espessuras que rompeu nem indica os pontos escolhidos para a sua pesquiza, certamente muito incompleta. Não falia de provas indirectas, ou de vestigios da industria antiga, que bem parece não ter procurado, ou não ter sabido reconhecer, apesar das tradições locaes apontarem esta e outras cavernas d aquella região como tendo sido habita- das por mouros.

Não admira, porém, que a Bonnet escapassem, em 1850, estas interessantes particularidades, quando hoje, com tanta sabe- doria que neste paiz se apregoa, ainda não se reconheceu a ne- cessidade do estudo das cavernas do Algarve, por mim proposto em 1877, e apenas tôcm sido exploradas, sob os auspícios da secção geológica, algumas do litoral marítimo da costa Occiden- tal, mas sem attenção á ordem geographica, não se podendo por isso formar approximado conceito da expressão etimológica das raras troglodyticas, que viveram n'este solo, nem da sua distri- buição geographica. Não ha, pois, um pensamento definido, pre- sidindo a este estudo, nem systema a que devam subordinal-o os próprios monographistas. Em assumptos archeologicos cada qual corre para seu lado; falta a congregação, porque a iniciativa não parte d'onde devera partir; apenas sobeja o antagonismo, pro- movendo embaraços e desconceito para os que trabalham.

Por estas e outras causas, o atrazamento n'este género de inslrucção superior em Portugal é deplorável! Por isso, o pouco que Carlos Bonnet disse, ha mais de trinta annos, de algumas cavernas do Algarve, é preciso aproveitar-se, agradecendo á sua memoria este serviço. Relativamente á igrejinha dos Soidos as seguintes noticias:

«Na vertente de sueste da rocha dos Soidos, acha-se a entrada d'esta caverna no logar denominado Sobradinho, ao norte de Alte um quarto de légua, ao nivel do chão, e é tão apertada, que com difíiculdade se vence a sua passagem. Para alli se entrar é mister levar luzes. E grandiosa, de forma circular, de abobada muito elevada á feição de cúpula, a primeira camará. As stala- ctites assaz grossas e separadas umas das outras formam com as stalagmites umas columnas similhantes ás das igrejas. Para o lado do nascente ha diversas passagens que se dirigem a cavi- dades baixas, e estas parecem capellas. Em razão de tal confi- guração deram os habitantes das localidades próximas a esta ca- verna o nome de Igrejinha, considerando a grande sala como nave central e as camarás contíguas como capellas. Nas proxi- midades da entrada ha muitas fendas e buracos, que communi-

cam com outras cavidades, como geralmente se acham em todo este lado do serro, sendo por isso perigoso percorrel-o sem um guia.»

Carlos Bonnet, pelas informações que obteve, diz ser muito maior do que esta a caverna do serro de Gueina, perlo de Algoz, acima indicada.

notei, que em Alte e Fonte Santa, ao sul do Sobradinho, são frequentes os instrumentos prehistoricos, abundando também os de cobre e bronze nas immediações da mina cuprifera de Alie; o que bem mostra ter aquella região sido frequentada pelas an- tigas raças que senhorearam o solo d'esta província.

Caverna do Poço dos Mouros. No concelho de Loulé, fre- guezia de Alte, e não mui distante da antecedente, acha-se esta caverna no serro da Pena, a noroeste de Salir uns 6 kilometros. E muito nomeada nas localidades próximas e em todo o Algarve. A gente mais antiga do campo refere-lhe varias tradições, e porque toda essa gente acredita convictamente, que fora uma das prin- cipaes habitações dos mouros, denomina-a por isso Poço ou Ca- verna dos Mouros.

O serro da Pena, figurando no alto relevo orographico d'esta província com 470 metros de altitude, numa cota pouco inferior ao serro dos Soidos, de que é separado por um extenso valle, termina a sua máxima elevação num apparatoso planalto ligei- ramente ondulado com mais de 3 kilometros de extensão de oeste para este, sobre uma largura que atlinge do norte ao sul mais de lk,500, sendo nestas ultimas orientações inaccessivel, por ser a rocha quasi cortada a pique.

É o serro da Pena mais procurado pelas rapinas (águias, griffos, bufos, francelhos e gaviões),1 do que pelos visitantes, que

1 Por informações cie alguns caçadores da freguezia de Aite, e do gente da próxima aldeia da Penina, o serro da Pena ò frequentado por muitas rapinas. Dão noticia de duas águias, que bem podem ser a real (Aquila chrysaclos, L.) e a imperial (Aquila heliaca, Savig.); do grillb (Gyps fulvus, Gm.); do francelho (Folco linunculus, L.?); do milha- fre (Milvus regalis, Br.); do buffo ou corujão (Bubo maximus, Sibb.); do gavião (Acci- piler nisus, L.) c de outras espécies, que não sabem descrever. Quasi todas são vulga- res, ou têem sido observadas no Alemtejo, e por isso não admira que também se achem no Algarve, cuja ornithologia, como tudo mais, carece de estudo especial.

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a muito custo conseguem vencer as abruptas e empinadas ver- tentes do poente e nascente para chegarem ao bello plan'allo em cjue se acha o Poço dos Mouros, a que alguns camponezes dão também o nome de Algar dos Mouros.

Percorri os mais elevados serros d'aquella região, e no da Pena fui principalmente observar a entrada do Poro dos Mouros, mas não visitei a caverna, porque não ia preparado com luzes próprias, porque o meu trabalho não permittia delongas em es- tudos não auetorisados. Foi porém duas vezes vista por Carlos Bonnet, e por isso vou restringir-me ás noticias que este acadé- mico deixou escriptas na sua referida memoria, publicada em língua franceza, pela academia real das sciencias, em 1850.

« A caverna denominada Poço dos Mouros, Buraco dos Mou- ros (Caverna dos Mouros) é a mais profunda da província e me- rece alguma attenção. Ácha-se a sua entrada sobre o planalto da serra da Pena, que n'este logar descáe um tanto para o sul. Não se descobre a sua abertura senão quando se está junto d'ella. A montanha, em razão das muitas convulsões por que tem passado; está cheia de amontoamentos de penedos ; a sua altitude junto á entrada da caverna é de 455 metros, medindo uns 20 metros de circumferencia sobre 5 de profundidade; mas pelo lado do nascente se pôde descer. As aguas pluviaes de uma parte da serra dão alli entrada e por isso a humidade lhe alimenta uma constante vegetação. Quando a visitei (diz Bonnet), havia uma frondosa alfarrobeira, que lhe sombreava e encobria a en- trada. Tendo-se descido, acham-se muitas fendas e para o no- roeste duas aberturas, uma á esquerda, de 7 a 8 palmos, e outra mais pequena á direita, por onde uma pessoa, de grossura me- diana, pôde passar e descer a uma profundidade de 12 a 15 palmos, onde se encontra uma camará, alumiada pelas frestas, de solo ondulado e escorregadio, com 30 palmos em todas suas dimensões. Do lado de oeste 35° norte, acha-se outra abertura de 12 palmos de largura e de 15 a 18 de altura para um corre- dor de ladeira rápida de 75°, onde é preciso caminhar com luz. Tem este corredor para noroeste uma inclinação de quasi

35°; percorridos 100 palmos de extensão, diminue de largura, até 4 palmos e de altura a uns 7 ou 8. N'este ponto reparle-se num grande numero de zigzags, permitíindo ainda o transito até uma extensão de 400 palmos, onde toda a passagem está inter- rompida por amontoamentos de pedras, que antigamente não existiam, e por isso se podia ir muito mais longe.

« Uns 25 palmos antes d'este ponto interrompido, acha-se na direcção de nor-noroesíe uma abertura mui pequena, que en- trada a uma passagem bastante estreita no rumo do norte, onde é mister ir de rastos por uma apertada passagem de 120 pal- mos; então esta passagem toma o rumo de noroeste e começa a ganhar maiores dimensões, a ponto de se poder transitar de pé; e prosegue o seu alargamento até á distancia de 1 1 metros, em que se acha uma grande camará com 85 palmos cie comprimento na direcção oeste 32°, norte a sul 32° este, sobre 45 de largura. Do estreito corredor até este salão desec-se por ladeira pouco inclinada.

« Não é parelho o solo d'esta grande cavidade, porque para o centro começa a levantar-se pela formação de uma stalagmite. A abobada tem a forma pyramidal ou de funil invertido, com 140 palmos de altura. A rocha calcarea que constitue as paredes é lisa, compacta e polida. A abobada tem algumas stalactites. Para o lado do sul ha no solo um pequeno abatimento. Os morcegos são os habitadores d'esta recôndita camará; os seus excrementos formam uma espessura de 3 palmos. Rompendo a rocha con- crecionada do solo (diz Bonnet), não havia ossos. A direcção mé- dia d'esta caverna é oeste 45° norte a este 45° sul, o que noroeste a sueste. O seu comprimento, comprchendendo as sinuo- sidades, orça por 1:000 palmos (222m,23), e calculando a incli- nação das differentes rampas, poderá ter uma profundidade ver- tical, abaixo do plano da entrada, de 130 palmos, ou 28m,60.

« Esta caverna é assumpto de superstição entre os habitantes dos arredores, que só" se lhe approximam com certo terror, sem que todavia se atrevam a visital-a. A tradição refere que durante muitos séculos ninguém ousou n'ella entrar senão um padre, que

disse ler encontrado um lago e uma ribeira. O padre iria talvez numa occasião pouco depois das chuvas, e por isso acharia um deposito de agua; e não deixa de ser verosímil, que, n'uma epo- cha anterior, podcsse percorrer distancias agora interrompidas por amontoamentos de pedras, e achasse um reservatório subter- râneo; e tanto isto é de acreditar, que nas vizinhanças brotam abundantes nascentes cujas aguas podem provir d'este serro. 9

Em junho de 1846 e setembro de 1847, diz Bonnet não ter encontrado agua no interior da caverna.

O nome de Poro dos Mouros (referem os habitantes) provém de ter sido habitada a caverna pelos mouros, que se bateram sobre a montanha no tempo da sua expulsão do Algarve. A este respeito colligiu Bonnet uma lenda, que não reproduziu na sua memoria. Grande quantidade de calhaus arrastam para alli as torrentes pluviaes, interrompendo as passagens. A segunda vez que Bonnet visitou a caverna com um anno de intervallo, foi obrigado a abrir caminho por elles, em logares onde no anno antecedente não existiam, e por isso julgou que passado mais algum tempo ninguém poderá chegar á grande camará que ficou descripta.

O serro da Pena, segundo as observações feitas por Carlos Bonnet, apresenta no seu planalto uma ligeira inclinação de oeste para este, tendo a oeste a sua máxima cota de 470 metros, no centro a de 460 melros e a este, junto á entrada da caverna, 455 metros. Este abaixamento de 15 metros com relação ao ponto culminante e á extensão da montanha, forma pois um an- gulo muito agudo, e por isso pouco sensível á vista do observa- dor. A rocha pertence a formação do calcareo jurássico, tendo ao norte no seu contacto a faxa triassica, que corre do poente para o nascente, cortando a província inteira.

Diz Silva Lopes,1 que na raiz da rocha da Pena e na da Pe- nina, meia légua distante, brotam fontes de agua férrea, o que com effeito verifiquei ser exacto, e que umas grandes fendas, que

Clioroçrrapliia do reino do Algarve, pag. 320—1841.

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atravessam a rocha da Pena, foram produzidas pelo terremoto de 1755, que lhe desaggregou e expelliu a grandes distancias varias pedras de prodigiosa grandeza.

O facto de não ter Carlos Bonnet achado ossos humanos no corte que fez sobre o solo concrecionado ou stalagmitico da grande sala dos morcegos, é insulíiciente para provar que neu- tros logares da caverna não haja indícios de ter sido habitada em tempos prehistoricos. As tradições locaes deixam presumir que o foi, porque talvez em tempos antigos alli se achassem os- sos humanos ou objectos próprios dos usos da vida, e que não se conservando noticia de outro povo anterior á invasão mussul- mana, aos mouros se referisse a occupação da caverna; e para que não ficassem essas memorias sem o maravilhoso que lhes ó peculiar nas lendas tradicionaes, imaginou-se um grande com- bate no alto do serro da Pena entre mouros e christãos, e a re- tirada dos mouros vencidos para o interior da caverna, quando é provável que o mais próximo combate que houvesse, fosse o da tomada do castello de Salir, uns 6 kilometros a sueste do Poço dos Mouros.

Interpretadas assim as tradições, accresce a circumstancia congruente de terem por vezes apparecido nas proximidades da caverna, em Paniachos, campos de Alte e Fonte Santa, como vão indicados na carta prehistorica, significativos critérios neolithicos e da idade do bronze.

Faltando, porém, as provas affirmativas, suppram-n'as por einquanto as presumpções de que uma bem dirigida exploração poderá mostrar que não os mouros de outro dia, mas os selva- gens de outr'ora seriam levados a utilisar um tão vasto e seguro abrigo, tanto mais tendo-se verificado a existência de um dolmen coberto, destruído, no serro das Pedras, situado na linha de no- roeste a sueste, entre a caverna do Poço dos Mouros e o castello de Salir, como vae figurado com a sua respectiva planta na es- tampa n.° xi, e com os objectos alli achados, representados na estampa x, sob os n.os 1 a 8, advertindo que entre o dolmen e a caverna haverá apenas a distancia de uns 5 kilometros.

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E porque mui provavelmente não serei eu o explorador cTessa caverna, aqui ponho de aviso, a quem o for, a circumstancia, parcialmente declarada por Bonnet, que pode dar-se, de não se- rem alli encontrados ossos humanos, mas simplesmente provas indirectas de ter sido habitada; o que poderá significar, se taes provas indirectas apparecerem, que os troglodytas da caverua do serro da Pena preferiram construir depósitos externos para reco- lherem as relíquias dos seus defuntos. Talvez então se descu- bram outros depósitos mortuários nos mais próximos serros da região e maior copia de critérios prehistoricos nas circunvizinhan- ças da celebre caverna, que venham auxiliar esta presumpção.

Se me tivesse sido entendida e concedida a proposta que fiz em 1877, para que o estudo das antiguidades do Algarve come- çasse pelas cavernas, os factos suppririam hoje escusadas conje- cturas. É o que succede todas as vezes que se altera o andamento de qualquer trabalho, ou quando se encommendam trabalhos pú- blicos, mais por conveniência de occasião do que pelo zelo scien- tifico.

Caverna da Solestreira. Occupa esta caverna uma extre- midade da formação jurássica no contacto da rocha triassica entre Salir e Querença, freguezias pertencentes ao concelho de Loulé. Dizem varias pessoas, que a visitaram, ser uma das maiores d'esta província. Estive mui perto da sua entrada numa occasião em que não era possível pernoitar n'alguma das duas referidas freguezias, porque o pouco tempo de que podia dispor o empre- guei no exame que fui fazer ao serro das Pedras, onde havia um dolmen coberto destruído, que represento na estampa xi. Obtive comtudo umas informações, que me deixaram presumir a possi- bilidade de se poderem alli encontrar seguros vestígios de antiga habitação.

Descobriu-se haver no interior da caverna um espesso depo- sito de guano de grande utilidade para as terras cultivadas, pro- veniente da residência immemorial que alli hão tido os morcegos; e tendo sido extrahida grande quantidade d'aquella fertilisante

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substancia, disseram alguns informadores que por vezes se acha- vam pedaços de louça de barro muito grosseira, que bem mos- trava ter para alli sido levada por pessoas antigas, que se tives- sem refugiado naquelle logar cm tempos de guerra ou por outros motivos, e que além d'isto havia noticia de anteriormente se terem achado na caverna da Solestreira algumas cousas de valor.

Corre tradição local de que esta caverna tem communicação com a do Poço dos Mouros na serra da Pena; o que não é verosí- mil, porque tendo a faxa triassica, ao norte de Salir, apenas 1 kilo- metro de largura apparente, logo um tanto a oeste, estende para o sul uma ponta com mais de 4 kilometros, internando-se no ju- rássico superior, cortando e dividindo em duas secções dislinctas a grande massa jurássica, a qual por esta causa parece não poder deixar communicaveis as duas cavernas. Além da Solestreira, diz Carlos Bonnet haver nas montanhas entre Salir e Querença, um grande numero de cavidades naturaes, pequenas cavernas, fracturas e fendas mais ou menos largas.

Tudo isso devera ser cuidadosamente explorado em devida regra. A caverna dista do monumento do serro das Pedras para sueste uns 3 a 4 kilometros, e tem a igual distancia na orientação de sudoeste a celebre mina cuprifera da Vendinha do Esteval, cujos trabalhos antigos relatarei em seu competente logar; vae por isso indicada na carta prehistorica, advertindo porém aqui, desde já, que nas circumvizinhanças de Querença e da mina aífirmam os camponezes locaes terem sido achadas muitas pedras de raio e no interior, como nos terrenos adjacentes á mina, muitas cunhas de bronze com corte de machado.

Todas estas circumsíancias nas vizinhanças de uma região abundante de cavernas e grutas naturaes, recommendam a um detido exame esses recônditos logares, que em tempos assaz re- motos, bem poderiam ter abrigado os homens que tão perlo se dei- xaram representados por seus instrumentos de pedra e de bronze. Conírontando-se pois estas conjecturas com as que acompanham as noticias respectivas á mina da Vendinha do Esteval, melhor

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poderão compréhender-se c admittir-se as ponderações que me occorreram.

Addiciono agora a este artigo, que escrevi em 1883, uma noticia, de todo o ponto importante, que vem inteiramente confir- mar as minhas precedentes presumpções com um facto assaz po- sitivo, que prova ter, com effeito, sido utilisada a caverna da So- lestreira em tempos prehistoricos.

Encontrei-me em Faro no anno de 1884 com uns distinctos naturalistas inglezes e allemães, sendo um d'elles o dr. Gadow, professor da universidade de Cambridge, a quem communiquei varias noticias respectivas á paleoethnologia do Algarve, e, no- tando que se interessava pelo conhecimento das cavernas, affir- mei-lhe a convicção que tinha, havia muito tempo, de que ellas deviam revelar os mais antigos critérios das primeiras raças que viveram na região algarviense, e a propósito citei o facto de terem apparecido na caverna da Solestreira alguns fragmentos de louça antiga sob as espessas camadas de guano alli deixadas pelos morcegos.

Ao que parece, o sr. Gadow ligou alguma importância a esta informação, e annunciou-me logo que no anno seguinte voltaria ao Algarve para visitar as cavernas, e não faltou, porque em 1885, estando eu ausente, constou-me ter sido procurado por aquelle naturalista, que, não me encontrando, foi fazer um re- conhecimento na Solestreira, onde achou um esqueleto humano, contas da chamada calaite e outros objectos, cujo descobrimento communicou ao eximio naturalista o sr. Alfredo Bensaude, a quem sou devedor d'estes obsequiosos esclarecimentos. Escre- vendo-lhe, porém, o sr. Bensaude e eu posteriormente, pedindo informações mais desenvolvidas, o sr Gadow não continuou a tratar deste assumpto, reservando-o mui provavelmente para al- guma memoria que se proponha escrever.

Está portanto provado, que a caverna da Solestreira foi utili- sada para deposito mortuário, mui provavelmente no período neo- lithico, ou na epocha da transição d'esse período para a idade do bronze, em que também apparecem no Algarve as celebres

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contas de ealaite nos depósitos mortuários, como em seu logar mostrarei.

Caverna da Esparguina da Lapa. A villa de Loulé pode dizer-se que assenta os seus alicerces no centro da zona mais ampla e desaffrontada do jurássico superior. São numerosas as cavernas nesta região, comprebendidas entre a faxa do trias, ao norte e as formações ao sul do cretáceo inferior e do terciário la- custre superior, attingindo alli a zona jurássica a largura de uns 12 kilometros, contada do norte para o sul, passando pelo centro da villa. A maioria d'essas cavernas não tem nome conhecido; algumas tomam porém o dos sitios em que existem; tal ó esta da Esparguina da Lapa, ao norte do valle de Judeu, situada ao poente e a 8 kilometros de distancia da torre de S. Clemente, e taes são as duas seguintes:

Caverna do Barrocaliniio, a oeste e distante 5 kilometros da villa.

Caverna de Matos da Nora, a sueste e a 6 kilometros da torre de S. Clemente, e mais quatro cavernas na mesma orien- tação comprehendidas numa área de 2 kilometros.

Taes são as informações que a este respeito me transmittiu o sr. António de Paulo Serpa, empregado na direcção das obras publicas do clistricto de Faro, auctor de muitas plantas que foram levantadas sob minha direcção durante o reconhecimento geral das antiguidades d'esta província, de que me occupei em 1877 e 1878, e por isso mui habituado ao reconhecimento de anti- guidades.

São assaz conhecidas na região a que pertence a villa de Loulé as pedras de raio, por terem sido achadas por campone- zes. Nenhuma, porém, obtive, porque, quem as guarda, ali- menta certamente o velho e geral preconceito de que não cairá raio na casa em que existam; e por este mesmo motivo não con- segui obter em Portimão, Silves, Alvor e noutras terras bastantes

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e mui perfeitas, que me foi licito observar. Na aldeia de Que- rença obtive apenas um machado de pedra. 0 vasto concelho de Loulé abunda pois em critérios neolithicos.

se vê, pois, que na ultima idade da pedra foi aqueíle ter- ritório frequcnlado por homens que faziam uso de instrumentos de pedra polida e que n'esta extrema parte do occidente, como n'oulras regiões da Europa, construíram os tiimuli, as galerias cobertas, as antas ou dolmens para depositarem os seus defun- tos, assim como para os mesmos fins e para sua vivenda apro- veitaram as cavernas naturaes, chegando ainda numa epocha menos remota a escavarem grutas artificiaes onde a nalureza do solo não tinha formado cavernas, e portanto, havendo tantas ca- vernas na região jurássica de Loulé, não irá fora de propósito esperar-se que ellas possam corresponder com a mesma afirma- ção, se um dia chegarem a merecer este conceito e houver go- vernos e corporações scientificas que não julguem mal empregado o tempo e o dispêndio que exijam as explorações reclamadas por esses recônditos abrigos da infância humana. Haverá então quem se admire de que, tendo sido estudadas na Europa numerosís- simas cavernas, na data em que este livro está sendo escripto, se me haja recusado o estudo das do Algarve. O estado de civi- lisação dos povos avalia-se por estes e outros factos. A Dina- marca, a Suécia, a Hungria e outras pequenas nações pouca nomeada teriam hoje no mundo civilisado, se não se tivessem apresentado com os serviços que hão prestado ao progresso da anthropologia e da archeologia prehistorica.

Ooncelho cie Olhão

Caverna do Aijysmo. O serro de S. Miguel com 403 me- tros de altitude e o serro da Cabeça, também chamado de Mon- carapacho, com 246 metros sobre o nivel do mar, são pontos culminantes do lado oriental d'esta província, que flanqueiam o valle Formoso por onde corre a extensa ribeira que vae desaguar sobre o esteiro e foz do porto da Fuzeta.

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Está em plena região jurássica, tendo ao norte a faxa trias- sica e a sueste o terciário marino, que segue á beira do rio de Olhão para Tavira até quasi o flanco direito do Gilão. O serro da Cabeça mostra ter soffrido sensíveis alterações, apresentando a curtas distancias grandes e profundas fracturas, amontoamentos de grossos penedos, depressões e elevações, taes como para oeste uns pequenos outeiros de forma mammillar, e terá approximada- mente uns 6 kilometros de extensão, a partir de este, junto ao monte do Thesouro e terminando a oeste na aldeia do Jordana. No começo do serro, do lado do mar, está uma cavidade, um tanto cercada de pedras, que serve de entrada a uma grande ca- verna denominada o Abysmo, onde cheguei a entrar, notando haver diversas camarás e ramificações, mais ou menos difficil- mente transitáveis, mas que não percorri por falta de luzes apro- priadas. Diz-se terem sido d'alli extrahidos muitos objectos dei- xados pelos mouros.

Cavernas da Ladroeira Grande e da Ladroeira Pequena. No alto do mesmo serro da Cabeça, e quasi defrontando-se, estão duas outras cavernas, denominando- se uma Ladroeira Grande e a outra Ladroeira Pequena. N'esta, a entrada que hoje se lhe conhece é uma fenda estreitamente apertada, que impede a pas- sagem. Diz-se que teve outra, agora obstruída e em logar tam- bém desconhecido. Um tiro de rewolver produz no seu interior uma detonação forte e prolongada. Nada se sabe ao certo d'esta caverna.

A outra permitte a entrada para uma cavidade espaçosa e de abobada baixa. Dizem que tinha passagens abertas para outras grandes cavidades, mas que ha muitos annos estão obstruídas. Por este motivo, se é certo, também nada se sabe com verdade.1 uma exploração bem dirigida poderia esclarecer um tão im- portante assumpto. A região foi frequentada no período neoli- thico, porque ficaram as provas dispersas por todo aquelle accidentado solo. Muitos machados de pedra polida têem sido achados nos montes e terrenos adjacentes á rica aldeia de Mon-

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carapacho. Alli mesmo me vendeu um oleiro o que vac figurado na estampa xx (concelho de Olhão), sob o n.° 3. Qual seria pois a habitação dos homens que durante a ultima idade da pedra deixaram tão significativos signacs da sua existência nos terrenos de Moncarapacho? O futuro responderá, se alguma vez se tomar a serio um estudo que podéra estar feito, offerecendo á scicncia elementos importantíssimos, e collocando o paiz ao par dos que caminham nas sendas do progresso.

São estas as cavernas que vão unicamente indicadas na carta prchistorica: faltam talvez cinco vezes outras tantas. E fallo nellas e quiz muito de propósito apontal-as, embora não me fosse licito estudal-as, para que futuros escriptores, quando em Portugal se começar a comprehender a importância d'este estudo, não hajam de fulminar a minha memoria com as suas censuras, lançando á conta da minha ignorância o silencio a que me cum- pria votar este assumpto.

III

período neolithigo

SUMMARIO

Monumentos megalitliicos da architectura paleoethnologica. Menhirs. Alinhamen- tos.— Cromlecks.— Antas ou dolmens, synonymos de aras ou altares.— Discute-se se o dolmen apparente esteve sempre descoberto ou primitivamente sob tumu- lus. Opiniões e presumpções ácêrea d'este assumpto. Cistos, ou pequenos dol- mens. — Fundamentos que permittem suppor-se ter havido no Algarve cinco loga- res em que existiram antas ou dolmens apparentes. Descrevem-se as condições geograpliicas d'esses logares e indicam-se na carta prehistorica, 2.a columna, sob a epigraplie: «Anlas ou dolmens que presumptivamente existiram sobre o solo».

Na classe dos monumentos megalithicos i estão grupadas as mais typicas construcções da architectura prehistorica, formadas de grandes pedras toscas, comprehendendo os menhirs, alinha- mentos, cromlecks e dolmens.

O menhir é uma unica pedra tosca erguida a pino e cravada no solo, de forma variável e de diversas dimensões. D'estas pe- dras monumentaes consta existirem muitas in situ em todo o reino, mas ainda ninguém tratou de invenlarial-as e descre- vel-as.2 São vulgares e numerosas em vários paizes da Europa.

1 Diz-se ser este termo derivado do prefixo mega, que significa grande, e de lillios, pedra.

2 Depois de escripto este capitulo, veiu á minha mão um trabalho impresso em 1881 na typographia Lallemant, intitulado : Relatório e mappas acerca dos edifícios que devem ser classificados monumentos nacionaes, apresentados ao governo pela real associação dos archileclos civis e archeologos porluguezes, em conformidade da portaria do minis- tério das obras publicas de 24 de outubro de 1880.

Este relatório, servindo de resposta á portaria, dividiu os monumentos nacionaes (?)

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Em França, onde tudo se estuda, estão contados mil seiscentos trinta c oito menhirs, distribuídos por oitenta departamentos, sendo o maior d'entre todos o de Locmariaquer, no Morbihan, actualmente prostrado e feito em três pedaços, o que nâo impede de se conhecer que, inteiro, media 21 metros de comprimento e 4 de espessura, sendo o seu enorme peso avaliado em 250:000 kilogrammas.

Estas pedras isoladas são attribuidas ao período neolithico e ás primeiras idades dos metaes, sendo possível que algumas haja de tempos menos remotos. A sua significação tem sempre pare- cido problemática. Não se julga que tenham sido marcos territo- riaes, por apparecerem a curtas distancias em regiões limitadas, ou isoladamente. A crença popular em varias localidades lhes attribue significações religiosas, a ponto de que algumas têem sido decoradas com uma cruz ou uma imagem. Não são padrões fu- nerários, porque as excavações feitas no seu recinto não têem mostrado vestígios mortuários, comquanto perto de certos tiimuli e mesmo de dolmens se achem isoladas ou formando circuito. O sr. de Mortillet julga os menhirs simplesmente commemorati- vos. No meu conceito, porém, é essencialmente mysteriosa a sua significação e muito arriscada a classificação, que se pretenda fazer relativamente aos tempos a que pertencem os que não se

em seis classes, e na ultima registrou os prehistoricos. Em todo o reino ficaram pois indicados trinta e três logares com dolmens ou antas, três com menhirs e dois com mamunhas. Nada mais!

Estão portanto ofíicialmente inventariados três menhirs e todos no concelho de Villa Velha do Rodam, um em Fantel, outro em Monte Fidalgo e o terceiro na ribeira de Alcafalla.

Segundo parece, o ministério das obras publicas quiz, porém, obra mais fina e apurada, e como tinha no orçamento de 1881-1882 á sua disposição uma verba de réis 230:000^000 para gastar com edifícios e monumentos públicos, etc, consta ter expedido outra portaria com data de 29 de dezembro de 1881, encarregando o presidente da men- cionada associação de classificar os monumentos nacionaes, sendo para este fim auxi- liado por um pessoal também então nomeado, mas que não se pode com certeza indi- car, por não ter a dita portaria sido publicada no Diário do Governo.

Está pois este importante assumpto de todo o ponto inaccessivel aos que precisam saber quaes são os monumentos classificados (?) desde dezembro de 1881 até 1886, e sobre que elementos teclmicos se baseia a classificação. Estas cousas não devem constituir se- gredo de secretaria de estado; pertencem ao dominio publico, porque estão custando avultadas verbas, c porque devem ministrar esclarecimentos aos que trabalham.

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acham junto de oulros monumentos, que possam fornecer crité- rios de epocha. Em seu logar descreverei os menhirs e pyramides das circunvizinhanças de Silves e da Cumeada de S. Barlholo- mcu de Messines, cujo lavor ornamental parece excluil-os do pe- ríodo neolilhico.

Os alinhamentos são construcções de megalithos ou menhirs, de dimensões e formas diversas, enfileirados e distanciados mais ou menos entre si, com uma extremidade cravada na terra ou apenas collocados sobre o solo. Simples ou singelo é o que consta de uma única fileira de menhirs, ou de grandes penedos, e compos- tos os que são formados de duas ou mais fileiras parallelas, colloca- das a distancias de largura variável. O grande alinhamento com- posto de Carnac, no departamento de Morbihan, em França, ter- mina excepcionalmente por um hemicyclo que liga as suas extre- midades com a da primeira e ultima fileira, e correm em três secções separadas por espaços em aberto, numa extensão de 3 kilometros, as suas onze fileiras com mil cento e vinte menhirs. Ha. porém, outros alinhamentos de curta extensão em França, distribuídos por quinze departamentos, em Inglaterra e noutros paizes; uns que se julga pertencerem á ultima idade da pedra e outros á idade do bronze.

Ainda não se pode hoje affirmar qual fora o destino de taes construcções. Julgou-se a principio que seriam cemitérios, em que cada pedra indicasse um ou mais enterramentos; mas diver- sas exeavações junto dos menhirs confirmaram o contrario, não mostrando vestígios mortuários. A idéa que mais geralmente se attribuia na Europa a esses monumentos, propendia a julgal-os campos de reunião publica, em que se tratavam os assumptos mais graves e se procedia á eleição dos chefes e grandes man- datários da nação, ou em que se praticavam solemnidades reli- giosas. O sr. de Mortillet considera-os como podendo ter sido campos commemorativos, em que cada pedra representasse uma acção notável, um individuo, uma data. É porém possível, alar- gando ainda mais a liberdade da conjectura, que fossem, com preferencia ás outras hypothescs, campos de combate, e que cada

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pedra servisse de abrigo a um combatente contra o ataque dos inimigos, por isso que na Bretanha e n'outras partes se toem achado em substituição de menhirs extensas barreiras á feição de entrincheiramento. No Algarve não achei nem me consta que haja algum d'estes monumentos.

Os cromlecks são construcções monumentaes prehistoricas, em que os menhirs, geralmente de menores dimensões, ou pedras assentes no solo, se acham em figura circular, oval ou rectangu- lar, e é esta a feição do cromleck simples. Ha, porém, muitas variedades n'estas construcções, até o ponto de serem assaz com- plicadas. Ha cromkcks compostos, de duas e mais ordens paral- lelas de menhirs, com uma d'estas pedras servindo de centro e outros a curta distancia entre si, circumdados por um cromleck simples, como era ainda em 1713 o d'Avebury, em Wiltshire. Finalmente, mais algumas variantes na forma são ainda indicadas em Inglaterra, na Scandinavia e n'outros paizes.

A significação d'estes monumentos envolve tantas duvidas e incertezas, como a dos menhirs isolados e a dos alinha- mentos.

Varias circumstancias, porém,- tecm deixado persuadir que podessem ter sido logares fortificados e d.e abrigo contra invasões inimigas; pois tanío o grande cromleck de Avebury como o de Stone-Henge, perto de Salisbury, em Inglaterra, estão construí- dos em planaltos, que dominavam os campos adjacentes, e cir- cumdados de largo fosso, defendido por elevadas barreiras nos seus bordos.

Os historiadores inglezes inclinam-se a considerar estes mo- numentos como logares destinados a administração da justiça, aos negócios importantes da nação, e talvez mesmo ao culto re- ligioso, referindo Martin e Wormius, que ainda na segunda me- tade do século xiv, os nobres do norte elegiam os seus principes reunindo-se em círculos de pedra. Perto de Upsal, diz-se existir ainda o circuito de pedras em que Érico foi proclamado rei da Suécia. King, na sua obra Monumenta antiqua, affirma que os mesmos usos foram seguidos durante muito tempo na Irlanda e

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na Escócia. Seja porém qual for a força (Testas hypolhcses, nada com certeza se pode afíirmar.

No Algarve, muito depois das explorações que dirigi por incumbência do governo, recebi noticia de haver no cabeço de uns serros da freguezia de Vaqueiros algumas pedras alias, cra- vadas no solo e verticalmente erguidas. Não tenho informações de confiança a este respeito e por isso, embora as que recebi me possam inspirar a presumpção de haver alli um ou mais cromlecks, não ouso afíirmar cousa alguma. Devo porém desde indicar na freguezia serrana de Vaqueiros o elemento neolithico, em pre- sença de uma collecção, que em seu logar descreverei, de sílices lascados e de interessantes instrumentos de pedra polida alli achados em exeavações ruraes, pertencentes ao sr. António de Paulo Serpa, empregado na direcção das obras publicas do dis- tricto de Faro.

Antas ou dolmens. Não está provado que a região dolme- nica descesse até ás extremas raias do sul de Portugal. Percorri duas vezes esta província sem encontrar um único dolmen desco- berto, comquanto possa presumir que devem ler existido pelo menos nos quatro pontos que vão indicados na carta prehistorica do Algarve.

O dolmen, assim chamado pelos modernos archeologos inglc- zes, porque dizem derivar-se dos vocábulos bretões dol, que si- gnifica mesa e men, pedra, denomina-se em Portugal anta, ara, ou altar. Em Allemanha chama-se hiinengraben, em razão das tradições populares apontarem estas construcções como túmulos de gigantes. Em França, onde se acham distribuídos três mil quatrocentos e dez dolmens por setenta e oito departamentos, são conhecidos pelas denominações de allèes convertes, oustals, grot- tes} maison des fées, maison des loups e por outras propriamente locaes. A idéa, porém, de que eram altares em que se praticavam sacrifícios humanos, chegou a incutir-se no conceito de muitos sábios, tanto mais desde que os antigos archeologos britannicos os consideraram como altares druidicos, ou aliares em que os

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druidas, sacerdotes dos celtas (dizem elles), celebravam cruentos sacrifícios próprios de uma ceita sanguinária.

Tal era a idéa que em Portugal também havia relativamente a esses altares ou aras antigas, mais geralmente conhecidas pelo nome de antas, idéa que ainda em 1863 compartilhava o erudito abbade Audierne no seu livro intitulado De V origine et de 1'enfance des arts en Pêrigord, acceitando a tradição de que sobre os men- cionados altares celebravam os povos antigos sacrifícios humanos para assim applacarem os castigos do céu. Está, porém, compro- vado serem os dolmens muito anteriores aos chamados celtas e assaz numerosos em regiões que elles nunca invadiram.

A idéa de altar e de mesa, que a tradição ligou em diversos paizes a estes monumentos da architectura prehistorica, origina- riamente neolithica, ou da ultima idade da pedra, parece antes derivar-se da sua própria configuração, do que de noticias de sacrifícios n'elles praticados, que a antiguidade houvesse trans- mittido. Com effeito, alguns dolmens ha que a simples vista podem suscitar essa ou uma outra idéa similhante. Em Portugal, encontram-se não poucos com três e quatro esteios ou pilares cravados no solo, com ligeira inclinação para o eixo vertical, que são cobertos por uma grande lage á feição de mesa, comquanto outras muitas formas e variantes se notem ainda mesmo entre os de uma determinada região.

Discute-se ainda hoje, se os numerosos milhares de dolmens que isoladamente, ou formando grupos, existem espalhados nos continentes asiático, africano e europeu, foram sempre descober- tos sobre o solo ou primitivamente envoltos n'um montículo arti- ficial de terra. A ultima opinião de grande força, que a este res- peito appareceu, foi a do sr. Gabriel de Mortillet, no seu pre- cioso livro intitulado Le préhistorique, publicado em 1883. O sr. de Morlillet não admitte originariamente dolmens descobertos. Eis- aqui as suas convicções: «Os dolmens não estão intactos senão quando se acham pela primeira vez oceultos na terra. Logo que são descobertos, alteram-se rapidamente. Sem difficul- dade se podem perceber os progressos da sua mina e reconhecer

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que os suppostos altares não são mais do que as mesas que se firmam sobre os pilares desnudados. . . pag. 589 ».

N'outra pagina do seu livro (596), reforça este sábio o mesmo conceito, dizendo: « Todos os dolmens estavam primitivamente sob a terra. » Nos arredores de Paris eram enterrados no solo, prin- cipalmente nas rampas das collinas. N'outras partes eram cober- tos de tumulas, que diz serem amontoamentos de terra e pedra formando cabeços ou montículos. Se presentemente vemos dol- mens descobertos, é porque se acham mais ou menos em ruinas. Habitualmente observando-se com attenção, se reconhecem restos ou vestígios do antigo tumulus » .

Outras opiniões, também fundadas em factos de observação, e entre ellas a do barão de Bonstetten, seguem um rumo inteira- mente opposto, querendo provar que todos os dolmens descobertos assim estiveram sempre desde a sua construcção.

A meu ver, julgo estas contrarias proposições demasiado po- sitivas c sem sufficiente comprovação.

Concordando com a opinião geral, perfeitamente demonstrada, de que os dolmens sempre foram mansões mortuárias, mas tendo em vista as condições mui diversas em que n'elles se acham sepultadas sob ou sobre o solo as relíquias humanas, acompa- nhadas de instrumentos de pedra e de outros artefactos coetâ- neos, e primeiro que tudo as condições da construcção de taes monumentos, parece-me poder admittir a existência dos dois ca- sos, presumindo que muitos dolmens, que ha séculos estão desco- bertos, estiveram primitivamente oceultos e protegidos por mon- tículos de terra e pedra, assim como outros teriam ficado inten- cionalmente descobertos.

Ha dolmens, cujos pilares são dispostos com tal ajustamento entre si, que fecham completamente o seu circuito com o auxilio de um megalitho servindo de porta, e que por isso, tendo a co- bertura bem adaptada ás extremidades dos pilares, não carece- riam de ser envoltos por montículos de terra e pedra para asse- gurarem toda a possível resistência a qualquer acção de invasão no seu antro. Ora, quando se possa verificar que cm dolmens

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assim defendidos pela robustez e disposição dos seus esteios e mesas, os enterramentes foram feitos por excavaçâo no solo, e este ainda coberto de lageado, pode entender-se que todas as precisas precauções de segurança contra o ataque do homem e das feras, tinham preenchido os constructores para não se verem obrigados a esconder n'um montículo artificial o monumento de- fensor das suas tão recatadas relíquias; e portanto não repugna admittir-se que os dolmens, n'estas condições, podem ter ficado descobertos e servindo como padrões commemorativos, consagra- dos á memoria e abrigo dos que n'elles foram sepultados. Logo, pois, que o sr. de Mortillet (Le préhistorique, pag. 586) consi- dera os menhirs isolados e até aquelles que entram na composi- ção dos alinhamentos (pag. 587) como commemorativos, sem que junto delles se tivesse alguma vez achado uma qualquer prova archeologica, com melhor presumpção se me afigura po- derem ser assim interpretados os dolmens que não careciam de ficar occultos e que provavelmente foram levantados em honra dos mortos.